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RAÍZES PARTIDAS

RIO DE JANEIRO, O ELDORADO DOS PORTUGUESES

Veranico de maio de 1888. Manuel Gaia chega de Portugal num paquete a vapor. Contido em trajes que denunciam hábitos franciscanos, embora não sejam puídos. Nem grosseiro, muito menos sofisticado. De longe, já enxergava o Brasil pujante, pois que, de perto, viu Portugal mal acomodado em uma casinha pequenina: partiu para não chorar por toda a vida. Para abraçar um futuro e, na poeira do destino, esquecer o que nem mais quer que seja revelado nos descaminhos da memória. Deixou para trás embaraços que impediriam sua progressão nos negócios em conjunção com o amor. Senão desconcentra. Construir uma história. A sua. Criar uma família. Fincar raízes. Dar conta de sua missão. Sua evolução seria demarcada por descobrir quem é e o que veio fazer aqui. Mas, por favor, uma coisa de cada vez! Saudades de Portugal? Afogá-las-ia quando alcançasse esse platô. Quando uma porta se fecha, muitas janelas se abrem.
Trouxera guardado no fundo da mala o elixir para se realizar no Brasil: a perseverança. Tinha como garantido trabalhar sem descanso, baseando-se simplesmente em insistir e preparar a mente. Só então a sorte bafeja, enfunando as velas para encorpar seu destino.
Levas e levas de portugueses aportavam no Rio de Janeiro vindos do além-mar. Alguns eram caixeiros e tinham emprego assegurado, geralmente no pequeno comércio urbano, junto a parentes e amigos conquistados ainda em terras lusitanas. Ou jovens galegos, sem laços familiares, que dormiam nos locais de trabalho, convertendo-se em agregado. Brancos e católicos, o perfil do imigrante desejado num país que carecia de instrução e qualificação na mão-de-obra e enfrentava o desafio de se tornar uma sociedade moderna. Os portugueses de Portugal buscando o Eldorado junto aos portugueses do Brasil. O Brasil como Canaã, a Terra Prometida no imaginário português. O Velho Portugal não apresentava perspectivas; inclusive do ponto de vista político, o Brasil era a solução para a pobreza.
O vapor apita ao entrar na Baía de Guanabara. A toda hora Manuel crivava de perguntas um marinheiro tição:
– Eu esperava tudo, menos chegar nessa beleza que é o Rio de Janeiro com esse temporal.
– Não se preocupe, já vai parar.
– Como, parar? Chove a cântaros.
– É chuva de verão…
– Mas que verão? Estamos em maio.
– Daqui a pouco estia.
– Com esses trovões todos?
– Tu vais ver.
O sol se abre.
– Raios que me partam! Não é que tu tinhas razão?
– Ô, portuguesinho, vai se acostumando com o Brasil. Aqui nunca se sabe ao certo como vai se acordar no dia seguinte.
– Tá vendo aquele areal lá longe, brilhando? Ali ainda hei de construir meu negócio!
– Estás louco? É o sol que brilha por sobre o areal, meu sinhozinho!
– O Rio de Janeiro é um paraíso.
A entrada na Baía de Guanabara era a concretização de um sonho. Tamanha surpresa que parecia alucinação, jamais poderia imaginar o espetáculo que a natureza proporciona – o dito diferente do visto.
Parece que alguém colocou o dedo na tinta e desenhou o contorno dos morros, obra e graça de uma criança. É a coisa mais linda o contraste entre as montanhas e o mar, inspira arte ao invés de majestade, colore as esperanças. Não existe nada igual, o que será que estão querendo dizer?
– Eu quero ser um homem respeitado, trabalhador, empreendedor… Vou dar meu sangue para que essa cidade seja mais maravilhosa do que os meus olhos conseguem alcançar. Vou crescer junto com ela. Desmoralizar o calor que induz à preguiça e ociosidade.
Sonhando de olhos abertos, desligou-se da paisagem, imerso na labuta de construir, pedra por pedra, um estabelecimento comercial que oferecesse rica variedade de gêneros alimentícios e diversos utensílios caseiros.
Manuel achava o mundo ainda muito aristocrático: cheio de espartilhos e fraques, cartolas e véus, luvas e monóculos. Esse mundo, positivamente, não era para ele. Já nasceu com essa certeza. Não estava disposto a apenas admirar o belo da paisagem e sim nela se integrar, visualizando seu futuro através desse mesmo belo.
Um sujeito que despreza o belo de estalo para enxergar o interesse maior se desumaniza. Mas ele só acreditaria que era humano se visse a árvore que plantou coalhada de frutos, pedindo para serem colhidos. Esse seria o momento ideal para ele se humanizar, o de compartilhar os frutos que plantou. Só assim se daria por satisfeito.
Manuel continuou a ter visões.
– Um dia as pessoas ainda irão querer passar o dia inteiro na praia, aprender a nadar, brincando com os filhos, se refrescando. Eu quero chegar lá primeiro.
Ainda não havia porto numa cidade de 500 mil habitantes, sendo os navios obrigados a fundear na Baía de Guanabara e transferir os passageiros para embarcações que fazem o traslado até o cais Pharoux, diante dos olhares de ociosos que se debruçam na balaustrada. Manuel desembarca no salão de visitas da cidade sob o odor de petisqueiras servindo caldos verdes nadando em grossa banha de porco, com fregueses de pança cheia aliviando-se à farta, com um palito à boca e outro, sobressalente, atrás da orelha. Adentra o Largo do Paço – testemunha ocular do Dia do Fico e da aclamação dos Pedros do Império – e segue em direção à Rua Direita, em meio a carruagens cujo estrépito dos cascos dos cavalos no piso pé-de-moleque provoca um som gostoso de ouvir e parar boquiaberto por segundos.
Rua Direita, a mais larga e imponente da cidade, onde se estabeleceram casas de câmbio, exportadores de café, negociantes atacadistas, relojoeiros de luxo e a confeitaria Carceller – famosa por seus sorvetes -, ao lado de quitandeiros e baianas.
Os bondes puxados a burro atravancam as ruas estreitas, os pingentes no estribo tiram fino de andaimes, carroças e cavalos da polícia de ronda; os vendedores ambulantes soltam a voz no mais histérico dos pregões, faz-se do grito uma canção que a população reproduz em tom de galhofa. O funileiro, o mascate, o baleiro, a baiana do cuscuz e da pamonha, e o homem do realejo.
Arrisca uma espiada mais comprida por sobre a porta de vaivém do restaurante Rio Minho, freqüentado por comandantes de navios e forasteiros mais abastados, defronte à Praia do Peixe. Arregala os olhos só de pensar o que terá de encarar um dia: guisado de tartaruga, grelos de abóbora, passarinhos fritos com bananas e empadinha de ostras. Sob o anúncio de que restaura idéias embotadas e assossega idéias fixas.
Ah, a célebre Rua do Ouvidor!
Fechada ao trânsito de carroças e cavalos, tinham sede os grandes periódicos, os principais hotéis, reputadas bancas de advogados, os mais respeitados consultórios médicos e os mais freqüentados cafés. Rosto eloqüente da cidade, que transparecia um maior distanciamento do Brasil-Colônia e melhor retratava os costumes do século XIX.
Lojas com um requinte e aparato que atraíam uma seleta clientela. As mais finas casas de moda feminina que denunciavam o gosto de imitar nos hábitos e no vestuário as francesas, cuja fama se estendia a cabeleireiros. Meias e ligas as tornavam coquetes, a fim de atrair casamentos que dessem um jeito nas suas vidas.
Apercebe-se da característica básica do carioca: os peraltas, na arte e ofício de acuar raparigas e senhoras, mediante galanteios batidos. Falando alto, gesticulando, arrimados na ociosidade, distribuindo sorrisos espalhafatosos para os quatro cantos.
Manuel estanca no meio da rua, tentado entre os sanduíches do Castelões e um cálice de Madeira na Deroche. Diante do caldo-de-cana, do guaraná e do refresco de pitanga, o exotismo servido em taça de cristal alongada. Se andasse mais dois quarteirões, encontraria pastéis de nata, toucinhos do céu, travesseiros de amêndoa e ovos moles de Aveiro na Cavé. Mas bate os olhos nas edições da Livraria Garnier.
Na Garnier se reúnem literatos famosos em pequenas rodas de conversa, cultivadas pelos habitués da casa de Baptiste Louis Garnier. Manuel percorre devagar os balcões centrais, cheios de livros, de autores que nunca ouvira falar, sequer tivera notícia, vislumbrando um dia a ventura de seus filhos e netos poderem adquiri-los, levá-los embaixo do braço, lê-los e penetrar no mundo mágico das idéias e sensibilidade que a ele não seria permitido. Não haveria tempo. Seu projeto de construir castelos em areia, ou melhor, armazéns nas areias de Copacabana, Ipanema e Botafogo, não era coisa de visionário ou demente.
Saintive, o livreiro, pergunta se ele está interessado em alguma publicação em especial, enquanto Manuel alisa o endereço em relevo da Garnier em Paris: 6, Rue des Saints-Pères. Fascinado com os títulos dos volumes, xereta o convite de casamento de Saintive dirigido aos clientes da livraria. Exultante com as bodas, Saintive já pensava em convidá-lo para o rega-bofe:
– Como é mesmo sua graça?
– Manuel Gaia.
Ouve-se, de repente, uma algazarra vinda da rua, uma multidão explodindo de alegria, negros, mulatas e crianças se abraçando e cantando, em impressionante e comovente comemoração pela abolição da escravatura: “A Lei Áurea foi assinada! Viva a Princesa Isabel! Finalmente estamos livres!”. Sábado, dia 13 de maio de 1888. Negros usando calças riscadas, chapéu e casaca, carregando botas que nunca haviam usado como uma espécie de troféu.
O calor remanescente do verão expulsa a todos de casa. A noite promete. Lotação esgotada nos teatros, cafés e bares localizados nos arredores da Praça Tiradentes, centro nervoso da diversão carioca, ponto de encontro de estudantes, políticos, artistas e boêmios. Quem se julgasse requintado tinha que passar ao largo. Os cardápios eram raros nos restaurantes, a maioria analfabeta opta no menu decorado pelo garçom, entre tripas à moda do Porto, batatas fritas na banha e bacalhau assado na brasa. A cerveja, carinhosamente chamada de virgem loura; o absinto, de prêmio do céu; e a cachaça se passava por água de Nossa Senhora. É tal o vaivém de gente, o murmúrio de vozes cortado por gritos rejubilando-se com o momento histórico em meio ao barulho ensurdecedor da louça em manejo, que emociona Manuel. Com a sua sorte.

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Antonio Carlos Gaio
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