NÓS SOMOS COBAIAS DE DEUS
27 de março de 2000
Cazuza é um dos filhos de Deus que mais
incomodou. O saudoso poeta-menino viveu a todo transe uma época marcada pelo
estremecimento que o almoço de domingo nas grandes famílias viria a sofrer.
Legando sua marca no ferro em brasa ao cantar “nós somos cobaias de Deus”.
A moda agora é o jogador reclamar da
torcida que, ao vaiá-lo, retira-lhe as condições mínimas para exercer seu
trabalho sério e laborioso no gramado. Ingrata plebe, as estrelas não entendem
que os carneirinhos podem se transformar em lobos quando os ídolos amarelam,
pipocam ou brincam no bloco do Eu Sozinho. É óbvio ululante que querem ver o
craque rendendo mais, driblando para o lado certo, soltando a bola para aquele
livre ali na direita, parar de centrar atrás dos paus e de girar feito uma
enceradeira. Pedir para vaiar mais é xingar a mãe do torcedor.
O sadomasoquismo está presente nas
arquibancadas. E nas eleições. São Paulo é Alagoas. Alagoas é Collor. Collor é
Maluf. Maluf é Pitta. Pitta é Nicéa. E Nicéa rompeu a corrente da felicidade que
vinha desde Adhemar de Barros e Jânio Quadros. Desde a cobrança de propinas de
camelôs que vendem guarda-chuvas chineses até empresários de ônibus e
construtores.
Ele, negro, humilde e trabalhador,
conforme faz questão de apregoar em cartaz de papelão através do vidro do carro
oficial. Ela ameaçou a segurança da instituição da família brasileira.
“Os homens agora têm medo de mim. Ficou
difícil arrumar namorado”, confessa a ex-mulher de Rubens de Faria - incorpora o
espírito do Dr. Fritz e cura doentes. Ao ser traída por uma amiga de sua filha,
denunciou o médium por exercício ilegal de medicina e processou os produtores de
“Beleza Americana” por plágio.
Rose Marie Muraro considera as Nicéas
mais importantes para o Brasil de hoje do que a oposição, porque, vomitada a
denúncia, o rabo preso desaparece e as partes íntimas da sociedade são exibidas
sem censura, não dando tempo de maquiar ou transferir para um horário político
mais apropriado. O caráter de vingança contido no vômito é irrelevante,
tratando-se de mau-caratismo.
No carnaval, o bloco Simpatia é Quase
Amor desfilou com adereços prevenindo: “Escolha bem sua mulher. Ela pode ser sua
ex” e “Casamento acaba, mas ex-mulher é para sempre”. Um taxista não quis saber
de cair no samba pois temia que sua esposa confiscasse seu ganha-pão, se o Fusca
falasse. Os homens estão cercados e vão seguir o conselho do ACM: a solução é o
prostíbulo. Não fazem mais que sua obrigação obedecer os mandamentos da cartilha
neoliberal, pagar direitos trabalhistas pra quê? Se diminuirmos os encargos
sociais, o nível de emprego embarca no trem das onze e essas lesas-pátrias
marcharão ao lado dos vagabundos aposentados, na Avenida Paulista, clamando pelo
restabelecimento da monarquia.
Esse negócio de constituir família tá
meio falido, casa própria o Sérgio Naya se encarrega de demolir, e a lama chegou
finalmente ao mar. A torcida vaia por isso, um fedor danado. Se o cê-cê é meu,
olho zangado para Deus por tamanha falta de inspiração, mas agüento. O dos
outros, com franqueza.
Cazuza se imolou como o monge budista
que pôs fogo nas vestes, esquecendo que também era carneirinho e que não poderia
passear por onde bem entendesse, cantando “vamos pedir piedade, senhor piedade,
a essa gente careta e covarde”. Seu lobo nos espreita em cada esquina e não
vacila, mata e come.
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