INVASÃO DOS
CELULARES
26 de junho de 2000
Ah, esses estranhos seres com seus celulares! Capazes de caminhar
nas ruas falando sozinhos, com seus celulares. Andar molhando os pezinhos no
remanso das águas do mar, com seus celulares. Dar as costas ao pôr-do-sol, com
seus celulares. Nem bem o avião desliga as turbinas, desandam a ligar seus
celulares. Desde a Torre de Babel, os donos de celulares pouco têm a dizer, mas
estufam o peito, abrem os braços e fazem questão de usá-los em público. Gente
importante, séria e trabalhadora - “Sabem com quem estou falando?” - que
transforma você em confidente a contragosto.
No setor reservado aos caixas
automáticos de um grande banco todos tiveram que interromper suas operações
porque um invasor mal-educado não parava de se esgoelar ao celular por questões
menores de falta de fundos, transferência para cobrir o vermelho e a falta que
faz um depósito-laranja.
Quem assim se esgoela é porque
positivamente não acreditava que os resultados da CPI do Judiciário culminassem
na prisão de juiz e empresários preocupados com a causa da construção civil. O
próprio ACM não imaginou que as investigações levassem à cassação do primeiro
senador da República, posta em pratos limpos por essa casa legislativa, sob a
sua presidência. Ele mesmo é quem irá bater o martelo e sentenciar a degola de
um dos seus pares mais desassombrados e meteóricos, se examinado sob a ótica da
Operação Uruguai. O inigualável ACM, testemunha ocular da História que cassou
inúmeros outros senadores por ameaçarem a nossa tenra democracia investidos na
pele de lobo comunista.
Na pele de cordeiro, mulher deixa o
celular ligado em concurso público, apesar dos cartazes espalhados pela escola e
do aviso antes de iniciar o exame. Cartão vermelho para ela logo que tocou o
celular. Daqui a pouco voltamos ao Velho Oeste, em que os pistoleiros tinham que
deixar as armas com o xerife ao entrar na cidade.
Injustiça com a rajada de ventos que
sopram o Brasil, que pretende cassar os 460.947 votos do senador Luiz Estevão de
Oliveira - 47,7% dos votos válidos. Seu arrojo e ambição o enlouquecem a ponto
de “estar pronto para viajar, se o grande negócio é plantar ervilha na lua”.
Talvez seja o caso de encaminhá-lo ao médico que afixou no consultório: “em
respeito à tranqüilidade de todos, pedimos que desliguem o celular na sala de
espera”.
O melhor a se fazer é sair do país, de
verde-amarelo, e torcer pelo Guga no Torneio Roland Garros. Quanto mais rezo,
mais assombração me aparece. O taxista toma bênção do pai pelo celular, avança o
sinal e prossegue falando. No aeroporto, relaxado pela mão suave do engraxate,
que faz massagens no meu pé com flanela e escova, ouço despedida da mulher e
filhas com saudade e da amante com a promessa de voltar mais cedo. O celular
buzina tanto que você não sabe se ouve ou se lê, impedindo-me de degustar as
incertezas quanto à escolha da argumentação usada pela defesa dos cinco
policiais que sufocaram o seqüestrador do ônibus 174. “Ação movida por emoção em
legítima defesa da sociedade”, “crime acidental não intencionado”, “cada um de
nós desejou puxar o gatilho de casa, acompanhando o caso pela TV”, pura
negligência que torna o homicídio passível de pena cumprida em liberdade.
Confesso que é para perder as
esperanças. No berço da cultura, em pleno Torneio Roland Garros, os juízes
advertem exaustivamente a platéia para que desligue seus celulares. O sinal
estridente irrita tenistas que arestam bolas, atores que perdem a concentração,
professores que têm suas aulas interrompidas, e passageiros que absolutamente se
interessam pela conversa rastaqüera ao seu redor.
Nem mesmo no banheiro o maníaco se
desconecta do seu celular. Sentado na privada, recebe um telefonema da mulher
que há muito tempo corteja, achando ser ela a mulher de sua vida. Justamente no
momento em que a prisão de ventre dava sinais que iria explodir.
O celular está para o civilizado assim
como o espelhinho está para o índio.
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