CACOETE
21
de agosto de 2000
Em época de politicamente correto, não se pode falar mal
dos negros, porque os brancos abusaram. Não se pode
falar mal dos judeus, porque os alemães nazistas
abusaram. Não se pode falar mal dos deficientes físicos,
porque a sociedade descobriu que, não faz pouco tempo,
podia andar sobre as duas patas e iniciou a reparar
calçadas, escadas e banheiros públicos. E o que dizer do
cacoeteiro?
Piscar os olhos sem parar, enrolar o cabelo no dedo,
andar em círculos ao falar no telefone, cuspir,
cafungar, pigarrear, assoar em seco, fazer caretas ou
simplesmente roer unhas são alguns dos gestos
incontroláveis para quem tem cacoete. Quem não se lembra
do Sinhozinho Malta, que sempre balangava as pulseiras
do seu braço quando estava nervoso? Na vida real, as
pessoas se alimentam de um arsenal de manias e, o que é
pior, arrumam tique nervoso sem sentir. Como uma
aborrecente que rangia os dentes até a mandíbula sair do
lugar, tendo que ir ao médico para encaixar de novo. Daí
arrumou outro cacoete, cada vez que lembrava da dor
fazia uma careta horrível.
Outro cacoete revelador é quando você é tentado a
mentir. Para evitar o suor respingando na testa e o
indefectível lenço, segura-se o pescoço para que a
cabeça não role e ajeita-se incansavelmente os óculos de
grau. E dá-lhe de desenvolver a nova estratégia de
mentira, chamada pluma no vento, que é emitir uma
opinião, sem argumentar, e logo depois voltar atrás, sem
a menor cerimônia, de cara limpa. Como o poderoso Bill
Gates, que surgiu com uma concepção angelical de empresa
fundo de quintal para depois se transformar no monstro
monopolizador do mercado de informática, criando
incompatibilidade com o seu Windows 95 e falências para
outras firmas.
O cacoete é uma forma de aliviar as tensões decorrentes
da irreversibilidade da globalização. A salada de frutas
ideológica, em que se misturam neoliberal,
social-liberal, social-democrata, centro-esquerda,
comunista e neo-social, não consegue impedir a
conseqüência mais perversa da modernização: o
desemprego. No lugar de pêra, uva ou maçã, ansiedade,
medo ou insegurança?
Vivemos uma época de intensa promiscuidade entre os
poderes, independência que não se afirma, dependência
que se agrava, o nosso dinheiro financia privatizações,
o tráfico de influências inspirado no tráfico de drogas
se confunde com lobby, anistia-se multas no trânsito
para aplacar a consciência culpada dos loucos no
volante, multas por crimes eleitorais são anistiadas
pelos próprios deputados e senadores que fizeram a lei.
Uma mania de querer morar em palacete pois que a casa
não comporta o tamanho do ego de quem encara política
como negócio lucrativo não sujeito a balanço e pagamento
de impostos, inspirando o rap que estimula a violência:
“Agora é hora de eu ganhar dinheiro”.
Valoriza-se a figura do empresário, a necessidade de
criar inúmeras empresas para dar vazão aos múltiplos
negócios que surgem, fala-se ao telefone para cobrar a
fatura de anos e anos de sacerdócio na política e
assegura-se a renovação do voto no homem certo no lugar
certo. E não saímos do círculo vicioso, do jogo de
ronda, do lugar-comum: é dando que se recebe, uma mão
lava a outra, você coça as minhas costas e eu coço as
suas.
O ideal é que as pessoas não levem a sério as
brincadeiras dos amigos por conta do cacoete. O
politicamente correto graduou agentes chatos e atentos a
qualquer deslize para expô-lo nu. Dia virá em que as
peças desse quebra-cabeça se encaixarão e o tique
nervoso, sumiu. |