SÓ DE CABEÇA PRA
BAIXO
28
de agosto de 2000
Tillie Horman é uma americana de 64 anos que foi apanhar
a sobrinha russa no aeroporto e passou três dias de
cabeça para baixo. Presa ao cinto de segurança depois
que seu carro se projetou num abismo e ficou escondido
na vegetação de um manguezal. Sem nenhum osso quebrado e
muitas picadas de mosquito, nunca ninguém descobrira que
ela sempre foi uma ave desgarrada que fazia o macho cair
em desespero para arrancar dela uma declaração de qual
importância ele tem na sua afetividade. Porque ora ela o
procura para cruzar, como se o cio fosse o tempo de
consulta de um psicanalista, e ora tomam seu lugar os
cuidados com a aparência e as inúmeras técnicas de
rejuvenescimento.
Claro que Tillie não poderia revelar o segredo desse
descompromisso. Pendurada como no pau-de-arara, no meio
do matagal, viu o reino animal desfilar à sua frente e a
promiscuidade que nele campeia. Durante séculos,
pensadores cristãos juraram que as fêmeas eram
sexualmente monógamas. Acreditaram mais na Bíblia do que
em observar a viúva-negra australiana, que devora o
macho após o coito, recurso extremo para garantir a
perpetuação de sua herança genética, mantendo-a ocupada
na mastigação e evitando a aproximação de concorrentes.
Volúvel demais, assédio é bom e ela gosta. Cachorros
e moscas varejeiras prolongam o instante feliz para
evitar que a parceira se entregue a um rival. Os
caranguejos do tipo maria-farinha produzem uma secreção
que endurece como cimento, bloqueando a passagem do
esperma inimigo. O pênis da libélula remove o sêmen de
outros que já andaram por ali antes. A desculpa de que a
promiscuidade desenvolve mais os órgãos sexuais dos
machos não serve de consolo. Nós, leões, temos por
hábito matar os filhotes que ela teve com outros
felinos.
Ao querer se radicar nos Estados Unidos, Svetlana chega
e não encontra sua tia no aeroporto. Para não ficar
nervosa, se deixa adormecer na poltrona ao som da música
I Wish I Were in Love Again, cantada no rádio por
Frank Sinatra: “as noites sem dormir, os dias difíceis,
sinto falta dos beijos, e das mordidas, o adorável amor,
e o detestável ódio, com os pratos voando, chega de dor,
agora estou curado, do arranca-rabo entre cão e gato, eu
aprendi minha lição, mas preferia estar nocauteado,
amarei você até o dia que morrer, decepcionado por
acreditar em mentiras, a traição - que remédio! -, o que
mais prefiro é a clássica batalha, eu não quero paz”.
A léguas de Tillie e a milhares de milhas da Rússia,
Svetlana decidiu virar a página no dia em que o
submarino nuclear afunda e enterra 118 tripulantes
vivos. No sagrado dia em que a Igreja Ortodoxa Russa
decidiu canonizar o último czar Nicolau II e sua
família, fuzilados em 1918, depois de mantidos em prisão
domiciliar durante um ano pelos bolcheviques. Para
coroar a celebração de dois mil anos do nascimento de
Jesus Cristo e o soerguimento de uma catedral do século
XIX demolida pelos comunistas. Um desagravo aos
sofrimentos padecidos pela família imperial no
cativeiro, à humildade e à resignação cristã com que
aceitaram o martírio, enfim, a vitória da fé de Cristo
sobre o mal. O mesmo mal que grassava na corte czarista
imersa em guerras fronteiriças face ao tamanho desmedido
adotado pelo império, que causou fome e depauperamento,
necessitando que a guarda imperial abrisse fogo contra
milhares de famintos que queriam invadir o palácio e
chamar às falas o czar escondido debaixo das saias de
Rasputin, o salvador da pátria.
Só de cabeça pra baixo para entender melhor o que se
passa debaixo dos panos, o sabor do repasto nupcial para
a viúva-negra, e a insistência irritante de Frank
Sinatra em querer que nos apaixonemos de novo. |