ENFARTE
25
de setembro de 2000
Antônio Maria compunha canções no gênero
dor-de-cotovelo. Apaixonado pela boemia, morreu de
enfarte em retaliação ao médico que lhe tirou tudo o que
amava: costela e feijoada. Cardisplicente, desdenhava o
próprio coração ao brincar em suas músicas com o
“ninguém me ama”. Ele desfralda a bandeira da rejeição
em “ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor, a
vida passa, e eu sem ninguém”. Ele descrê de quem se
aproxima e professa a fracassomania em “e quem me abraça
não me quer bem, vim pela noite tão longa, de fracasso
em fracasso, e hoje descrente de tudo me resta o
cansaço”, e prevê seu fim, “cansaço da vida, cansaço de
mim, velhice chegando e eu chegando ao fim”.
Insistem que Antônio Maria não teve enfarte causado por
um mal amar. Entendem que as letras de músicas não
necessariamente refletem o que passa pela glote de quem
bebe e compõe. Como se o Chico Buarque não entendesse o
que se passa na alma das mulheres. Falasse apenas pelos
seus olhos argutos. Como se, ao entender, tivéssemos a
obrigação de alcançar tudo que almejamos. Como se a
poesia de João Cabral de Mello Neto não espancasse o
lirismo com sua beleza contundente que nega o espírito.
Como se o gênio de Machado de Assis tivesse que superar
os preconceitos de sua época, fácil falar quem já nasceu
livre de amarras, hoje.
Hoje? Paulo Francis foi um dos companheiros da Ultima
Hora, dos gloriosos tempos de Samuel Wainer e Antônio
Maria. Como crítico de teatro chegou a ator criando uma
mística completamente original, personal,
despropositada. Exasperou seus companheiros do Pasquim
quando endireitou, tomou o rumo de New York, cansou-se
de ser pobre, valorizou sua mercadoria e tornou-se o rei
dos jornalistas brasileiros ao se conectar com
Manhattan. Nunca se preocupou em ter se transformado num
Fausto, seu raro talento o fazia cintilar, ao navegar
por sobre as mais variadas matérias: economia,
ideologia, filosofia, pintura, literatura, cinema, e
analisando as tendências culinárias em espreguiçadeiras
de grandes hotéis. Os barões da inteligência lamentam o
desaparecimento precoce do cinismo farsesco que não deu
bola para a advertência do coração nas letras de Maria,
“nunca mais vou fazer, o que o meu coração mandar, o
coração fala muito, e não sabe ajudar”, na Canção da
Volta, “eu fiz mal em fugir, eu fiz mal em sair, e errei
em dizer, que não voltava mais, nunca mais, hoje eu
volto vencida, meu lugar é aqui, faz de conta que eu não
saí”.
Os seres humanos não são incompetentes ou estúpidos por
natureza. Muitas vezes, estão imbuídos do melhor
espírito de acertar. Pressionados pela necessidade
anarco-libertária de quererem dizer o que pensam e pela
certeza de não terem sido ouvidos. O enfartado não quer
aguardar o processo demorado e cansativo da melhoria das
relações humanas, tão cheio de obstáculos que o sujeitam
a explodir em imprecações, e a raiva não digere.
Inevitável, portanto, o mau hálito na boca que já
engoliu um número de sapos suficientes. E é mais um
mestre que se vai.
Chavões do gênero “nunca mais vou confiar nas
mulheres!”, “os homens não prestam”, “não presto, faço
tudo errado”, “não agüento ver tanta burrice”,
configuram o peso do passado influindo no presente
decorrente de crenças, hábitos e decisões irem se
confundindo a ponto de não querer largar o vício do
cigarro entre os dedos e a inalação da deliciosa fumaça.
Não abrir mão do inofensivo chope, das talagadas de
uísque e do bombom guardado na gaveta. E ainda por cima
o exercício diário e contínuo que cansa pela sua
constância - mas alivia o peso de uma existência
paquidérmica.
Morrem em vida não por serem enfartados, mas por se
deixarem encerrar numa redoma de vidro, se isolando como
Greta Garbo na floresta de concreto em que vivemos.
Positivamente, precisam de um cachorro-guia. Como o que
salvou uma família de fazendeiros do ataque de uma onça
em Mirassol. Os latidos alertaram a dona-de-casa, que
viu a onça de grande porte perseguindo o cachorro. Pegou
o filho de 5 anos, correu e fechou a porta no focinho do
cão, para que a onça não viesse atrás.
A onça devorou o simpático e corajoso vira-lata Freud.
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