O GOSTO AMARGO DA
DERROTA OLÍMPICA
2
de outubro de 2000
Andar desperto de madrugada com a cara maldormida e
rezar uma Ave-Maria às 6 da manhã enrolado numa colcha
de cores verde-amarelo, que berram para nos retirar da
condição de dispersivo e de curió que só canta na mão do
dono, não evitou a morte súbita do futebol brasileiro e
o adeus à única medalha de ouro que não possuímos. Ao
levarmos uma piaba do Camarões, que se aproveitou do
nosso estilo europeizante inspirado no corte de ternos,
ao melhor feitio de motorista de madame, que travestem
tecnicistas em líderes sem o menor preparo emocional e
ético. Nem bem uma geração desponta e já nos lega a
marca da vergonha e humilhação, afinal de contas, sair
vencido por 9 camaroneses em campo contra 11
bedéis é como se eu tivesse completado o time da rua com
o vovô e vovó queridos e arrasasse com a seleção do
bairro. Não fazemos mais a diferença, não tem mais time
bobo, entressafra, o nivelamento ao zé-mané, e foi-se o
crédito na praça e a fé pública. Ao não se descobrir o
epicentro do ataque epiléptico que desde a Copa da
França ataca os nossos ronaldinhos e a nossa cultura
esportiva, convida-se para entrar, com todas as
deferências e reverências, a derrota. Que é fiel e
desobstrui canais para dizer o que vem às ventas,
delírios e pesadelos, que adquirem forma, som e letras,
destilando a derrota com palavras de poucos amigos,
trajando um idiota possesso e cantando o hino de seu
clube com lágrimas de crocodilo. É o Zé Ninguém,
torcedor furioso quem vos fala, incapaz de respeitar o
coirmão, o rival inimigo a quem odeia, cujo prazer
oscila entre anunciar sua morte e achincalhar o que você
tem de mais sagrado:
“Nem bem as Olimpíadas começaram, a cearense Tita
Tavares dormiu demais e chegou tarde à semifinal do
Mundial de Surfe realizado em Anglet, na França, dando a
vitória de mão beijada à australiana Layne Beachley, o
que implicou não só em perder a oportunidade de alcançar
a sua primeira final como também de disputar o título
mundial neste ano.”
Xuxa se deixou comandar pela magia de seus belos olhos e
caiu do cavalo, escorregando na escada e machucando o
tornozelo, nos derrotando por WO ao deixar sua raia
vazia nos 100 metros, impedindo que Ed Bala ocupasse seu
lugar. O “catarina” se iludiu com a mídia, se encantou
com as susanas werners que vieram para tomar conta do
jornalismo esportivo, não se contaminou com a
discriminação odiosa dos atletas olímpicos em relação
aos futebolistas, e entrou noite a dentro.
Depois de liderar no ranking mundial das duplas de vôlei
que sarandeiam pelo circuito arenoso, o rei das praias
Loyola pagou o maior mico ao colher fracassos em duas
olimpíadas, transparecendo um amarelo diferente do ouro
ao arestar uma recepção de saque digna de um iniciante,
golpes de vista falhos, cortando de olhos fechados. Nem
Paulo Coelho, o mestre dos magos, adivinharia que a
febre amarela iria atacar o vôlei, tirando o ouro da
boca das duplas Shelda/Adriana e Zé Marco/Ricardo, além
de a Argentina nos obrigar a baixar a cabeça despachando
mais cedo o vôlei masculino.
Edinanci Silva passou pela maior invasão a que um ser
humano pode se submeter, acusada de ser homem o teste
visual dirimiu a dúvida, o que a levou a se refugiar nos
crentes para suportar o tranco. Nem sempre Deus ajuda no
ato da conversão, teve uma atuação apagada e se
desclassificou a judoca paraibana.
E logo nessas olimpíadas que Ed Bala e Carlos Honorato
se tornaram os primeiros negros brasileiros a
conquistarem uma medalha olímpica. Mas a maior glória do
judoca, que era reserva e só viajou para a Austrália
porque o titular se contundiu, foi o ippon de 43
segundos que fraturou o cotovelo do japonês
Yoshida, atual campeão mundial. Emocionando o torcedor
Guga, que saiu de mãos abanando, mas considerou
gratificante sua experiência em Sidney, divertindo-se a
valer.
Os psiquiatras não mudam o disco, o gosto amargo da
derrota provém da falta de equilíbrio emocional. O povo
não entende isso e sacramenta o amarelou, a antiga
tremedeira, o dar um branco que mancha a carreira, e o
verde-amarelo vira pano de chão. Quanto aos atletas, não
se consideram à altura do pódio, na hora H os braços
encurtam, as pernas encolhem e as mãos deixam escapar as
poucas oportunidades que a vida oferece para meia-dúzia
de eleitos.
Será o benedito, será porque dois bicudos não se beijam
é inevitável a derrota? Romário mandou demitir outra vez
o técnico Luxemburgo, a primeira aconteceu no Flamengo.
Derrotas expressivas no segundo escalão recomendavam:
Coréia do Sul, México, Paraguai, Chile, África do Sul,
Camarões. Se o Rio de Janeiro já foi considerado o
Recreio dos Bandeirantes, o Brasil é, agora, a
casa-da-mãe-joana dos africanos. Um rastro de destruição
que expõe às vísceras o coveiro Luxemburgo matando o
espírito do futebol brasileiro. A falta de auto-estima
que levava o jogador a amarelar nos saudosos tempos de
Nelson Rodrigues, onde o futebol era uma questão de
arte, é a mesma falta de auto-estima que leva o
Wanderley a se valorizar em excesso, onde o futebol é
uma questão de mercado, aviltando pessoas comuns que
passam a se expressar no idioma lazaronês,
convertendo-se em mequetrefes. É a mesma falha nos
caracteres que fez regurgitar o amarelão que atacou
Rivaldo em Atlanta, Ronaldinho na França, Alex e
Ronaldinho em Sidney. Sobra habilidade, valem milhões de
dólares, mas merecem uma psicóloga melhor do que a dita
cuja escolhida por Wanderley.
Se houvesse uma guerra, não seriam artilheiros nos
canhões e morteiros, não lançariam granadas, e comeriam
fogo da armada inimiga. Coelhos que não sairiam da toca,
entrincheirados no medo e na falta de audácia que irá
marcar essa geração caricaturada pela falta de gana,
marrocos, marfim e camarões, que pulsava no âmago dos
talentosos brasileiros que Luxemburgo garroteou,
retirou-lhe o brilho, de estrelas que se acostumaram com
a nota de 1 real acenada pela torcida em ocasiões
inesquecíveis, sem se dar conta de que o título de
melhor do mundo não mais nos cai bem, porque nos
tornamos coniventes com a política rasteira, a
hipocrisia reinante entre egos na soberba, os demasiados
não-me-toques no contato entre feras feridas, as
excessivas tabelinhas com a mídia, o mercenarismo de
quem levava 2 horas para chegar ao treino, de tão longe
que se encontrava, e ofender quem leva 2 horas para
chegar ao trabalho.
Que se decrete a prisão preventiva de Wanderley, não por
sonegação de impostos, aí teriam que começar por quem
está acima dele, e sim para que não volte a manipular
jogadores, mídia e torcedores com sua inteligência
privilegiada que só não conseguiu o antídoto contra a
linha burra de impedimento. Que os jogadores cujos
ganhos ultrapassaram os 6 dígitos aprendam a chorar com
Shelda depois de derrotas, sem se preocupar com a imagem
de fraco veiculada na TV. Afinal de contas, futebol não
é mais coisa só pra homem.”
Belo Horizonte é o cenário ideal para se compreender
melhor como se processa a insatisfação com as derrotas.
Como a do rejeitado Malisson que jogou ácido em Gisele
porque ela não quis reconsiderar e se retirou da
competição. Como a do soldado da Aeronáutica, de
22 anos, que matou a ex-namorada dentro da loja onde ela
trabalhava. No último passeio do taxista com a mulher
amada que o abandonou, o corpo dela repousava morto no
porta-malas. Últimos berros de dor, a tradicional
família mineira cede espaço para a evolução que se
verifica a cada olimpíada. A evolução da beleza do corpo
do homem, sem que seja rotulado de mulher, a expansão da
alma feminina, visível na força e graça nos cavalos,
barras e argolas da ginástica, a sexualidade transpira e
se afirma nas maratonas, destensiona o rumo que irá dar
ao seu sexo.
Os gregos devem estar felizes, finalmente começamos a
entendê-los. |