É PRECISO PASSAR O PIRES
6 de Agosto de 2001
Na senda da queda do Muro de Berlim, quando FHC se elegeu, comentava-se,
com arrogância, que a direita e a esquerda haviam escrito sua última
página. O fim das ideologias que vitimaram tantos que morreram em nome
da Guerra Fria, ou de overdose. Como se pudesse excluir do planeta o
continente africano, os 40 milhões de americanos que vivem abaixo da
linha de pobreza segundo Harold Pinter, e o Haiti, que é aqui.
Todo ser humano precisa captar recursos para
desenvolver seus projetos e viver o dilema de virar a casaca por causa
de grana. Num lugar suprapartidário, sem posição política fechada, fica
mais fácil passar o pires, um gesto oportuno que exige jogo de cintura.
Em havendo ideologia, cambiar de posição para obter plata muda o
valor de face de sua moeda, danificando a identidade e adulterando sua
responsabilidade social. De oportuno a oportunista, a menos que apele
para a moita.
Como Mick Jagger, que se exime da culpa de
transar com garotas que hoje tinham 3 anos quando as conheceu, “não
tenho culpa se elas estão envelhecendo”. “Quem olha para trás não olha
para frente”, Maluf ensina, referindo-se a eternas acusações oriundas de
um patrulhamento que deve jazer no século passado. Nem mesmo Mário Lago,
o criador da imortal Amélia, aquela que era mulher de verdade, se safou
dessa, ao exigir demais de seu corpo: “nem sei porque ainda falo e tenho
memória”.
Ai, que saudades da Amélia, que achava
bonito não ter o que comer, contanto que estivesse ao seu lado. A mulher
ideal que provocou reações iradas de feministas morre aos 91 anos e vira
verbete de dicionário como uma amélia de vida pacata, que fez estrondoso
sucesso no carnaval de 41 e granjeou fama em 60 anos de roda de samba.
Esse filme não sai de cartaz porque mantém
vivo a chama de uma utopia nostálgica em que eles eram o rei dos reis em
contraste com o pavor da secular lavagem cerebral que sacralizou as
mulheres nessa personagem.
“Todo mundo trai todo mundo”, interpreta o ator psicanalista Victor
Fasano como a resultante dessa pororoca, ressabiado com o casamento,
“uma coisa muito chata”. Menos mal, estamos evoluindo, no tempo das
amélias casamento era uma rotina inevitável.
Ideologia, eu quero uma para se viver. O
prazer é agora risco de vida, melhor pagar o analista para nunca mais
ter que saber quem eu sou, sopra Cazuza em nossos ouvidos.