PILOTO DE CAÇA
17 de Setembro de 2001
Ela teve vontade de perpetuar no epitáfio de seu marido o fel que verteu
da boca da escritora Rebecca West: “Nunca fui a lugar algum onde os
homens não decepcionassem as expectativas de minha infância. Ao longo da
vida, só uma ínfima minoria de homens me surpreendeu por suas
qualidades”.
Ele boicotava emoções, isolado em seu universo interior, eterno indeciso
entre preservar matas e queimar esse inviável mundo. Escondido atrás dos
óculos escuros, a olhar para cima, como a querer descobrir algo que
pudesse vir do espaço sideral, escorregando através dos raios solares
que abrem brechas nas copas das árvores, e que viesse a pousar em suas
mãos.
O silêncio dele ulcerava mente e coração. Agora seria definitivo. Seu
marido morreu sem dar motivo nenhum. De morte natural. Nem bem o defunto
esfriou, ela começou a fuxicar em suas gavetas, porta-luvas, caixa de
ferramentas, mesa de trabalho, varreu todos os arquivos do computador
descompactando inclusive os que estavam na lixeira, algum vestígio que
explicasse seu desaparecimento prematuro. Sim, porque ninguém pode sumir
assim de repente. Não tem esse direito. Será que essas pessoas que
morrem não pensam nas que vão ficar por aqui, ou chorando por ele, ou
queimando a mufa a escarafunchar com que diabos um homem mama
desbragadamente nas tetas para crescer soltando pipa, estudar e se
formar, e com a mãe nos seus calcanhares, ir à luta em busca de uma
mulher compreensiva e que não pegue no seu pé.
Desiste de contratar um detetive e emprega ela mesma para examinar as
consultas médicas custeadas pelo plano de saúde, catar os especialistas
e inquiri-los sobre contágios, coração e degeneração não apontado no
óbito, levantar seu percurso diário, enfim, descobrir qualquer coisa que
o comprometa. Sim, porque quem procura, acha, já nascemos com rabo
preso, e as dívidas que posteriormente aparecerão apenas materializam o
nosso débito carmático.
Ela acabou descobrindo que ele não deu conta, jamais daria, não se trata
pura e simplesmente de hetero não ser a sua, de não ter aquilo roxo, de
gostar de outro igual a ele - é o que todos sentenciam. Não, era muito
mais complicado. Ele se irritava com sua fogosidade, confundida com
vulgar, com sua cara de poucos amigos, entendida como desafio a seu
jeito de ser, apelando para o mutismo, quando ela com seus
questionamentos pretendia trazê-lo à luz da razão. Dinheiro, por ele era
poupado, por ela seria gasto nua montada num cavalo em praia deserta.
Amazona belicosa, conversava butucando com os olhos esbugalhados,
enquanto ele se enterrava na poltrona pedindo licença para poder viver e
respirar aliviado dessa gente que sufoca a gente com baboseiras a
serviço de apenas reafirmar seu valor chinfrim, nada acrescentando de
útil para romper o primário e limitado que emolduram o cercado desse
chiqueiro imundo que povoamos, assim ele se martirizava.
Dividir um teto com tal ser seria insuportável, ambos assim pensaram e
partiram em busca de seus destinos. Ela, livre daquele estrupício, e ele
enrustido num grande mistério.
Ela acabou descobrindo que não era só ele que não dava conta. Ele e toda
a torcida do Flamengo, ampliando o conceito de homem. Foi ao brigadeiro
de plantão e pediu para abrir um precedente, contando-lhe sua história.
Queria ser piloto de caça. Mas, para combater quem, cara-pálida? A
Argentina?
Por supuesto que não, seus dentes apodreceram graças ao
receituário do FMI. Encontrem um inimigo, por favor, procurem-no atrás
da cortina, ele não tem rosto nem expressão.
Por incrível que pareça, ela se tornou um piloto de caça, coadjuvada
pela neta do brigadeiro, querendo furar esse céu azul que nos protegia,
cuja atmosfera respeitávamos até os rolos de fumaça provocarem o buraco
de ozônio, por onde calafetaram rachas e fendas que deixavam passar o
prazer, criando raízes-serpentes que nos estrangularam e amarraram
feitos a um louco, reprimindo nossa vontade pura e cristalina.