AMIZADE, ISSO AINDA
EXISTE?
NATAL de 2001
O Natal e o Ano Novo sobreexistem como a bandeira branca que acena para
uma época onde vicejam interesses comezinhos e o pragmatismo impera,
cujas regras da competitividade assestadas em uma base econômica
implacável abatem mortalmente a amizade, significada na exclusão e
solidão que a segue, tangidas por uma ganância que obstrui nossa
respiração, torna o julgamento estrábico e trunca o pensamento.
A cada capítulo de novela, amizades fugazes relembram-nos do prazo de
validade vencido, um entra-e-sai que vai-e-vem e não nos deixa refletir
se estamos sendo subtraídos, chupados ou partidos ao meio, acumulando
perdas sem que essas experiências nos tirem do vermelho. Na cadência do
pagode se conhece muita gente, a orientação básica é ampliar ao máximo o
número de contatos abrindo com 150 nomes o caderninho de telefones,
banalizando a palavra amigo em vez de fazer valer o colega ou conhecido.
Que dilema transmutar uma simpatia forjada e circunstancial em lealdade
amiga e calorosa!
Eis que alguém se aproxima demonstrando ser um amigo afável e solidário,
com presença constante em sua casa, disponível para cultivar a tal da
lealdade. Mal escondendo uma certa euforia, você retribui e corresponde
na cola da amizade, coisa rara, e inicia a dilatação dos canais por onde
entra a gordura que nos mata do coração, ressentido pela falta de
convívio e intimidade em que expõe seu jeito piegas de ser, dá as suas
coordenadas e abre o cofre onde esconde o xis dos problemas.
O abraço de tamanduá aperta o laço quando suas qualidades acabarão por
incomodar a seu amigo que o admira e respeita tanto, tanto que
evidenciam tudo o que tem de mal resolvido e não possui na vida. O
simplório perde as estribeiras só de pensar que gozar da intimidade lhe
dá o direito de fazer, dizer e pedir o que é vedado a outros. Na maior
das inocências, se assegura do carimbo no passaporte, o amigo sempre irá
compreendê-lo.
Montesquieu enquadrou a amizade num contrato segundo o qual nos
comprometemos a prestar pequenos favores para que retribuam com grandes,
na linha do faça bem a mim, meu filho, que Deus te dará em dobro.
Chamfort não resistiu a seu próprio livro “Pensamentos, Máximas e
Anedotas” e se suicidou em 1795 para não ver publicado que “neste mundo
temos três espécies de amigos: aqueles que nos amam, os que não se
preocupam conosco e os que nos odeiam”. Para rebater, somente a ironia
irlandesa de Oscar Wilde, “ver com agrado os êxitos de amigos exige uma
natureza muito delicada”.
O Natal que não sai da cabeça é o do garoto que ganhou uma bicicleta
niquelada, iluminada e colorida, tanto que lhe pediram emprestada. Os
amigos de sempre. Abuso que vai e mau uso que vem, resmungos dão o
troco, esquentam o ânimo, alterna-se a bandeira branca pela quadriculada
que dá partida à vingança servida em baixela de prata. À altura da ceia
servida com nozes e castanhas no quengo do infeliz proprietário da
bicicleta, levando-o a ralar-se todo de encontro ao muro enrugado com
chapiscos pontiagudos. Caso a amizade sofra com isso é porque não
existe, foi o que ouviu de uma dessas tias de plantão, e caiu em prantos
num choro convulso.