POR QUE TANTA
MULHER CANTANDO NA MPB?
(Publicado no Jornal das Gravadoras de Setembro)
RÉVEILLON de 2001
Se o quanto não bastasse o que Chiquinha Gonzaga fez por essas mulheres,
ela ainda escondeu no filho seu verdadeiro amor, seria por demais
hercúleo enfrentar filhas, pai e sociedade.
A heroína Chiquinha só faltou cantar, mas abriu as portas do cancioneiro
popular, na era do telefone, para as cantoras do rádio, e logo a
primeira nos foi afanada por Hollywood e devolvida depois de devidamente
sugada, por não termos dado ouvidos ao “taí, eu fiz tudo pra você gostar
de mim”. Não permitiram que a luz de Carmen Miranda nos guiasse, mas seu
carnaval de cores pintou a estética do tropicalismo que fizeram o mundo
gay gargalhar à vontade da platéia atônita.
O caminho ficou livre para “Chiquita bacana, lá da Martinica”, Emilinha
e Marlene se digladiavam na arena da Rádio Nacional, Ângela Maria já
convocava Cauby Peixoto ululando “Babalu”, Linda e Dircinha Batista
atraíam as atenções de Getúlio Vargas, enquanto Nelson Gonçalves
desfiava Adelino Moreira na boneca de trapo, meu vício é você, pedaço
de vida que vive perdida no mundo a rolar, farrapo de gente e
inconsciente, peca só por prazer, boneca eu te quero, com todos os
vícios, com tudo afinal, eu quero esse corpo que a plebe deseja, embora
seja prenúncio do mal.
Foi o que bastou para Dolores Duran não ver outra saída para a mulher e
aceitar a bandeira da rejeição nas músicas de Antônio Maria em “ninguém
me ama, ninguém me quer, ninguém me chama, de meu amor, a vida passa, e
eu sem ninguém” e a fracassomania de “cansaço da vida, cansaço de mim,
velhice chegando e eu chegando ao fim”.
Quem canta, seus males espanta. As letras das músicas não
necessariamente refletem o que passa pela glote de quem bebe e compõe,
afirma com ar de entendido quem passou pela vida em branco e já entregou
os pontos.
Mas a lua atravessava o céu de zinco e salpicava o chão de estrelas dos
morros onde era sempre feriado nacional, e fez surgir a Divina, Elizeth
Cardoso, num palco iluminado, vestida de dourado, alimentando as
perdidas ilusões de Jacob do Bandolim nas “Noites Cariocas” e Ciro
Monteiro tamborilando sua indefectível caixa de fósforos, no fundo do
quintal.
Indubitavelmente, as cantoras brasileiras, em todos os gêneros, são o
que há de melhor no mundo. Mania de grandeza, ferroada do argentino.
Elis Regina entre Sarah Vaughan e Barbra Streisand. Ela não se conformou
com o bel far-niente do “Barquinho” de Ronaldo Bôscoli e se transformou
na nossa diva e de César Camargo Mariano no “Falso brilhante”, em que
“amor é um disparate, me faz pintar os cabelos, dobrar os joelhos, mesmo
diante do canto do cisne, me dá forças para o grito de carnaval”.
Maria Bethânia, Gal Costa, Nana Caymmi, Rita Lee, libertam a mulher do
invólucro que as encerrava, despachando a fragilidade, toque perverso
incutido na sua formação, para os quintos do inferno. Sob as bênçãos da
guerreira Clara Nunes, morena d’Angola, em seu candomblé rítmico. Ê
baiana, a rainha do partido-alto da “Portela na Avenida”, saravá meu
pai, e “o mar serenou”.
Não se sacrificou à toa, “bem que se quis” Marisa Monte para tirar a
Velha Guarda da Portela do fundo do baú assim como outros esquecidos na
rala memória da Aquarela do Brasil. “O que é que a gente não faz por
amor?”, “a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer
parte”, a liberdade de cantar composições de escolas e gerações
completamente diferentes entre si, unidas pela qualidade musical e
poética, firmando o bello canto brasileiro, aberto e libertário.
“Eu perco o chão, não acho as palavras, eu estou no meio, mas chego no
fim, tenho por princípios nunca fechar portas, para mim estrelas são
estrelas, para mim”, Adriana Calcanhoto não gosta de sinal fechado e
compôs um hino que supera a Cidade Maravilhosa. “Cariocas” são bonitos,
sacanas, dourados, espertos, diretos e, no gogó, com sotaque, não gostam
de dias nublados.
Mulheres cantando, preferência nacional, e não é por estarem falando
mais grosso com os homens, é porque conseguiram virar a página do século
e agora suas vozes finalmente estão sendo ouvidas.