SILÊNCIO
01 de Abril de 2002
Monstros pré-históricos se transformaram em
dragões, leões, cobras e águias, depois elevados à condição de antepassados, por
encarnação do instinto sexual e do gosto pela vida. Por essa época, inexistia a
individualidade, não havia a menor condição de sentir medo pelo que era, você se
via através do outro. Ser considerado ou ser submetido era o que em carne e osso
confirmava que nós existimos.
Posteriormente, é que surgiu essa coisa de solidão, de que não
há coisa melhor do que falar consigo mesmo só para desafogar as mágoas e atenuar
a dor. Você é como eu, não pode suportar a solidão, também precisa achar alguém
com quem conversar, para se assegurar de que não vale a pena distinguir do que
viveu, o que tem vivido de sonhos em suas lembranças e impressões, embora
comiche a curiosidade de saber o que se passa na minha imaginação e o que rola
de verdade na minha experiência, tendo como eco sua viagem interior.
Por mais que você guarde seu silêncio, é impossível
dissociar-nos, apenas prejudica uma viagem espiritual, embora seu rosto continue
uma fonte de ilusões. Também, de que vale nele buscar um significado a qualquer
preço, se não é senão uma imagem fabricada pela livre associação de idéias,
vagabundeando na memória, na vã tentativa de se resgatar uma imagem?
Menos mal que o universo gigantesco, onde tudo pode acontecer,
gira em torno de você e eu, esse tal de “nós” é enganador, soa afetado e
hipócrita no individualismo que nos concerne e nos norteia, obrigando-nos a
ingerir chás amargos de plantas medicinais que ajudam a dissipar os efeitos de
embrulhos que semelhantes nos causam. Por conta do silêncio.
Por conta do silêncio que atinge, maltrata e fere porque
insinua a indiferença que faz crescer a cara de desprezo que açoita os inúmeros
calcanhares-de-aquiles que dispomos para ensinar cuidado com o andor que o santo
é de barro. Santos de pau oco que despem um santo para cobrir outro no maior
silêncio, fingindo que nada acontece por acaso, duro mesmo é aceitar uma
realidade que soterrou o passado, acostumados que estão a olhar para trás,
tamanho o rabo que deixaram.
Se você se opõe às desigualdades sociais e às injustiças da
Justiça, e perdeu a noção do absurdo quanto mais olha este mundo e a própria
humanidade, é porque ainda não fez o que pensa ter feito, não é um cara para ser
levado a sério, como apregoa sê-lo, perseguido pela má sorte e maquinações de
gente malvada, como acredita que seja. As más línguas diriam que saiu do sério
porque não consegue mais ser totalmente sério, embora se magoe e rompa as
relações com quem tiver a audácia de revelar que não é mais verdadeiro.
Vai entender que não age mais com honradez e perdeu seu valor.
Pelo singelo motivo de que não é mais totalmente feliz.
Nessa hora, o corpo tirita de frio e de medo de tanto querer,
de poder voltar ao convívio dos seus, mas não acha mais ninguém. Assumir um novo
amor antes mesmo de ter rompido com o precedente pressupõe uma porção ativa
predominante sobre o passivo que nos mantêm na indecisão. Ou se domina o próprio
destino ou é o destino que o domina. Ou se imola em paixões fugidias ou foge
como o diabo da cruz e volta a si. Ou se concentra em matéria de amor ou fica
sem saber o que amar. Ou se assume os riscos da ambição, a base do que vier a
empreender, ou não se distingue dos outros.
Como o zé mané que vendia lápis gigantes de ônibus em ônibus.
Quem irá comprar aquele trambolho no ônibus e levar para casa? Se ainda fosse na
porta de escola, cujo senso crítico à criança não ofende, vá lá que seja. Só
pode ser um carma escolher o lápis gigante como fonte de seu sustento. A
comparação, se medida a proporção, fere suscetibilidades, que importa se quem
procura o amor sem ter dinheiro, não acha o amor, ou se quem procura o dinheiro
sem ter o amor, acha o amor”, arremata o chinês Nobel de literatura, Gao
Xingjian, com a maior seriedade.
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