A BURRICE EM
ESTADO DE GRAÇA
08 de Abril de 2002
Na clara concepção do brasileiro, toda loira é
bonitinha por ser burrinha e loura. Ser burro não é um fardo tão grande
e dá para engolir a burrice dela, pois se burróide é o debilóide que não
diz coisa com coisa, é natural que burrão seja o burro velho, teimoso
que nem uma mula - só o burro sobressai nele. Empacam e não saem do
lugar, se assustam com qualquer mudança de rumo nos destinos do país,
caçar marajás foi o que de mais arrojado puseram fé.
Filhos do patriarcalismo e do clericalismo, sistemas
totalitários machistas que concentraram extraordinários poderes em poucas mãos.
Partiram a cara da sexualidade, vista como proibida, perigosa e pecaminosa, e
vandalizaram a obra de arte onde se reproduz a vida, revoltados com a historinha
da carochinha em torno do pecado original que perpetuou o vício de que não fomos
feitos para dar substância ao prazer de amar, e sim para nos lembrar da falta de
ou, quanto mais temos, mais queremos e restamos insatisfeitos, cristalizando o
mistério de forma profunda e radical.
Dando seqüência ao processo de acelerada desumanização a que
estamos sendo submetidos, uma intoxicação globalizada tornou tetraplégico o
pensamento crítico, colocando o jovem no mesmo rodamoinho do idoso, pinça uma
idéia ao léu, mas não processa nem concatena, pouco adiantam os membros, que de
tanto banalizarem os gestos, robotizam. Em estado de graça, subjugados,
dependentes e despersonalizados, formam uma massa de manobra numa cultura onde
não existem projetos para sonhar a utopia, em que o materialismo procura banir a
espiritualidade de onde viemos e para onde iremos, recorrendo ao utilitarismo de
não perder tempo observando as estrelas.
Os burros constroem um sistema de vida sob a pressão da
clonagem por temerem o mesmo fim da seringa descartável, só quem tiver história,
berço e consistência fará jus a cópia, daí para o lixo é um passo. Se esquecem
que não são bactérias, vírus ou fungos cuja imortalidade se vincula ao processo
civilizatório, ignorando que somos singulares a partir do momento em que o
médico dá um tapa na bunda e nos desperta para a realidade da diversidade - um é
diferente de um.
Confundem espírito com ego, exatamente da mesma forma como os
políticos em campanha presidencial ao abusarem da ironia e do riso às bandeiras
despregadas em meio ao clima de insegurança nas ruas brasileiras que reproduz,
por tudo, a Cisjordânia ocupada. Só faltam os tanques, pois que as balas já
riscam o céu noturno, as rajadas de fuzis lançam os moradores ao chão longe das
janelas, tiros na barriga interrompem a satisfação garantida no Big Brother.
Quebraram-se as barreiras entre favela e asfalto, milícias fortemente armadas
disputam a supremacia, o bonde do mal é o seu carro-chefe.
Os técnicos de futebol já se acostumaram a serem chamados de
burros à medida que se aproxima a Copa do Mundo, onde se renovam os valores
fascistas de exaltação à pátria, como atacar, defender, estratégia e capitão. O
viking que nos dirige adicionou o estilo Scolari à ideologia sob pretexto de
formar um grupo fechado, em suas mãos, que caracterize uma família sem lugar
para estrelas que rachem a unidade. Aos torcedores resta embarcar nessa nau e
ter o mesmo destino dos fiéis de Jim Jones ou elevá-lo à condição de guru em
caso de sucesso. Ou se alienar do futebol como a classe dirigente que não vai
para o Paraíso, o paraíso é aqui.
A mídia a tudo testemunha encerrada em seu ceticismo, perdeu
sua capacidade de emoção nos anos pós-Collor, fiada nas fumaças do primeiro
mundo. Só se ajeitam melhor na poltrona para assistir a reedição de cenas do
filme "Viridiana" na fazenda do presidente, chocados com a indigência mental do
MST, que dançaram, beberam e comeram à farta, às nossas custas, e enxovalharam
os objetivos justos de um movimento político famoso pela arregimentação e
organização informal.
Perder a capacidade de indignação é o maior sintoma de
anestesiamento, mesmo sob os fluidos de Semana Santa em Fernando de Noronha.
Passaram em branco as reflexões do presidente de que trabalhar, só no
estrangeiro, "no Brasil, eu descanso".
Brincadeira à parte, que se recorra aos militares, ao menos
descobriram em sua ditadura que com uma casta só não se faz omelete. Dependendo
do gosto, há quem prefira "quando eu ponho um peixe no meu prato, eu não vou
perguntar se ele quer ser comido ou não".
Burro é o que julga ter uma solução pro Brasil.