SER REI
08 de Julho de 2002
O cenário do reino é uma sofisticada
cantina da praça em que apagados pai e mãe vibravam com o filho vestido
no berro de estilistas que levantam auto-estima. Caprichava no metálico
dos óculos escuros e no enrolar o espaguete no garfo para sorvê-lo na
colher sem que um pingo do molho respingasse na roupa da grife.
Tem certos pais que se anulam pró-filho aparecer como o
mais formoso, vitorioso, digno de admiração, tudo o que não conseguiram
ser, e resgatar o orgulho da raça, bem entendido, o perfil de uma
geração de antepassados fracassados que não souberam vingar uma família
que todo mundo enche a boca para mencionar seus feitos heróicos, suas
conquistas materiais e o seu percurso para sair da lama - a pobreza - em
que eventualmente nascemos.
É imperioso quebrar o destino, que mais parece uma
condenação, perpétua por entre as reencarnações, se não for nessa, vai
ser quando, quer me dizer? Tudo, portanto, pelo filho, longa vida ao
príncipe herdeiro, o verdadeiro rei que comprova ser o sangue azul
vermelho de raiva para ser nobre, nobre de princípios que regulam o
código do monarca soberano, que apenas os segue para dar uma aparência
de que rei difere de plebeu e a coroa define o melhor. Mas ai de você se
cair no mau grado, na insubmissão e no desafio ao que o imperador sente
mais medo, medo Dali que vem a morte, daonde provém seu insucesso, pois
o imortal julga que as emoções e os sentimentos passam ao largo do
cetro, o fio de sua espada sempre o manterá rijo.
Mas é debaixo da terra que a rigidez alcança o auge, sua
mente lhe adverte.
Por isso, os pais cedo desistiram desse louco projeto. E
projetaram no filho a esperança de resgatar o que tinham de melhor em
si. E o que tem de melhor em si é confiar no que você tem a dizer, põe
em prática, realiza e, só nessa hora, mostrar, mostrar-se, exibir, ser
visto, ser elogiado, se os outros assim o quiserem, numa eleição
legítima, porque ao coração cabe o cutelo da rejeição.
A mente é que pensa que pode controlar tudo, que cobre toda a
vastidão de nossos desertos sólidos e sós, a vasculhar atos falhos que
confessem vacilos, meneios, uma Alice no País das Maravilhas que abre as
portas e não consegue entrar em nenhuma, mente megalomaníaca e tacanha
que perpetua dinastias políticas e empresariais calcadas em existindo o
poder que se reserve a melhor suíte para hospedá-lo na família, o
nepotismo é que manda na arte de acolher os outros.
Quando se atinge ao estágio de ser rei sequer se assusta, como os
mortais, diante de aparições que representam sinais, símbolos, videntes
imagens de que a realeza não enche a barriga e não satisfaz o ego de
pais que coroam filhos. Filhos ungidos por pais que se desenvolveram com
essa carga vergarão sob o peso da obrigação digna de um Papa, o povo não
é mais fiel ao rei quando não uma ficção. Procurarão manter a imagem de
que agora o reino está organizado e estável, cresceu a olhos vistos,
estimulando ladrões à sua volta criados em hortas privatizadas e
terceirizadas. Infeliz restará o filho-rei, pois não lhe foi permitido
possuir o Absoluto nem dispor do Paraíso, salvo usufruir meras quimeras
orgíacas dignas de um sultão.
Somente a extrema-unção o libertará do pesadelo de ser rei, para começar
tudo de novo, plebeu, sem o rei na barriga. Tu és rei?