A CULPA É DA POLTRONA
09 de Setembro de 2002
O episódio do World Trade Center deu novas
cores à triste situação em que já se encontrava o passageiro ao embarcar
num avião. Jumbos abatidos por confundir com o inimigo, explodidos por
bombas no bagageiro à mercê de credos e ideologias fanáticas, seqüestros
que visam a pô-lo no rumo certo, artistas bêbados no delírio do ego,
psicopatas e maníacos, tabagistas em jornada contra a repressão e, o que
é pior, não se pode mais fazer sexo no banheiro do avião para curtir o
barato da Via Láctea num cubículo de causar inveja, um absurdo!
Quando se consegue alcançar o aeroporto a
50 km de seu doce lar, vencido o engarrafamento, não se consegue
distingui-lo de uma rodoviária, nem passar incólume pela revista que o
alinha, de princípio, ao Osama bin Laden, por causa da maldita tesoura
de unha. Sem contar que é necessário guardar um semblante de muito siso
e esconder o riso para não levantar suspeitas. Quando o policial compara
seu rosto com o da fotografia do passaporte, dá vontade de confessar
imediatamente sua culpa de ter nascido num mundo que finalmente
desvendou a charada do recém-nascido chorar tanto quando emerge do útero
ensangüentado. Bons tempos em que os prepostos da ditadura militar lhe
inquiriam sobre quais são as suas intenções ao pretender visitar um país
comunista!
Foi com esse estado de espírito que o
assessor da Assembléia Nacional da França, Cyril Savtchenko Belsky, de
pernas compridas, sentou-se na sua poltrona, irritado com a metragem
quadrada reservada a cada passageiro com que as companhias aéreas nos
enjaulam. O que obrigou o deputado Roberto Jefferson, da tropa de choque
de Ciro, o Grande, a se submeter à cirurgia de encurtar o estômago para
diminuir a pança e caber numa poltrona, sacrifício esse que Jô Soares
dispensa ao comprar dois por um.
Torna-se cada vez mais freqüente o uso
indiscriminado desses assentos como cama por preguiças em forma de gente
que apagam com facilidade, faça chuva, faça sol, dia ou noite, o barulho
do motor embala. Desesperando os insones preocupados com a dinâmica de
nossa existência ao som de roncos profundos, melodiosos, babões,
sujeitos a efeitos especiais que só denotam o ridículo de nossa
aparência. O fato de traçar o jantar não lhe dá o direito de apertar o
botão e arriar bruscamente a poltrona-leito sem sequer se importar com o
passageiro que está atrás de você, esmagando copos, jogando ao chão
restos de comida e te imprensando com o seu egoísmo. Isso quando não
reclina logo ao entrar no avião, cai bem tomar um tranqüilizante e
transferir suas neuroses individualistas para o banco de trás,
transformando o avião em spa de relaxamento. Dá vontade de transformar a
luzinha em cima do passageiro em holofote que dispare uma luzona na cara
daquele infeliz.
Foi com esse estado de espírito que Cyril
socou de volta a poltrona reclinada repentinamente pela produtora de
modas Elenice. Mal podia adivinhar que ali iria começar seu inferno
astral, os dois socos atingiram as costas e a imobilizaram por conta de
uma lesão no pescoço. Para quem já tinha problemas de coluna, só faltava
essa.
Há 10 anos, ela foi atingida por um saco
de água de 20 litros quando descia de um ônibus em Copacabana, sofrendo
um desvio de coluna e paralisia facial, tratado com morfina, cortisona e
um colar ortopédico.
Olha o nível, Savtchenko Belsky, senão
irão associar a cavalice aos seus ancestrais, como manda a boa regra do
preconceito. Está em jogo o nosso nível de autocontrole no tocante à
convivência com desiguais, de respeitar normas omissas quanto à nossa
capacidade em criar problemas. A banalização em marcha confunde ser
cavalheiro com ser cavaleiro, as mulheres se ressentem dos tempos
bicudos em que se divide contas de restaurantes e se perde o romantismo
com a saia justa dos direitos iguais, mal disfarçando a carência por
recompensa para a sobrecarga e estresse das tarefas diárias.
Nada que surpreenda no terreno da aviação,
a 10 mil metros de altitude, tão perto da estratosfera, equivale a se
arrogar no direito de agir segundo seu instinto básico, gravado no DNA
de civilizações cuja tecnologia não aprimora seu berço nem ao menos
confere verniz.