MAL-INTENCIONADO
09 de Dezembro de 2002
Todo cidadão que zerar seu patrimônio,
“doando” seus bens a parentes e amigos, restando em seu poder, apenas
para manter as aparências, uma mísera linha telefônica, que não quer
dizer nada, está mal-intencionado em não comprometer o futuro dos seus
filhos com o endividamento auferido às custas de pungar o bolso do
alheio. Público ou privado.
Todo sujeitinho que pede dinheiro emprestado e
se ofende com a recusa a ponto de romper as relações com o seu “doador”,
é porque esteve sempre mal-intencionado na pornografia de mamar nas
tetas sem fazer o mínimo esforço para subir alguns degraus. Partem do
princípio que a graça divina não os alcança e o infortúnio é a tônica.
Os bem-aventurados que paguem a conta.
Toda figura bem-posicionada no status da
sociedade que procura pegar uma carona no seu trem, ao pressentir que
irá ser ultrapassada, revela sua má intenção ao jamais considerá-lo como
um igual, no mínimo, e reconhecer sua própria decadência inexorável.
Se a Eva não lhe aprouve comer a maçã de pronto,
ofertando a Adão a mordida mais saborosa, foi de má intenção, porque
sabia que iria dar frutos até a eternidade. Deus soprou-lhe no ouvido e
assim fez a mulher.
Se uma amiga lhe avisa para se acautelar com
esse galinha que te paquera e, dias mais tarde, você a vê nos braços do
gajo, feliz, faceira e saltitante, é porque aí tem má intenção, acusam
as mulheres em uníssono ser normal a modalidade de assédio em seu
próprio reino.
Se marmanjos oferecem produtos roubados de
moradores da vizinhança a seus porteiros, para que aproveitem o preço de
ocasião, é sinal de má intenção na rede que fisga a todos na malha da
corrupção que esculacha a quem é assaltado, seja no topo ou na base da
pirâmide.
Nenhum bicho mal-intencionado pode alegar que
foi ficando assim com o tempo, se sempre estão a nos cobrar uma atitude.
Se a origem remonta à genética ou se adquiriu no meio da nossa selva, se
é nato no meio ou inato antes do princípio do caos, somente recorrendo
ao processo civilizatório nascido na sociedade grega, em que Sócrates
foi alvo da má vontade com espíritos avançados que descem à Terra para
fornir nosso conhecimento com verdades eternas. Que, quando originais,
indispõem os homens que vestem a carapuça e atingem mortalmente
preconceitos que sustentam sistemas.
A crença de Sócrates nos Espíritos mereceu-lhe
zombarias, seus reparos à democracia a taxação de subversivo, e a pior
ofensa que se pode dirigir a um homem de bem fez jus à condenação
através de veneno. Injuriou-o pondo seu caráter em dúvida: “a virtude
não pode ser ensinada. Ela vem por uma dádiva de Deus àqueles que a
possuem".
Lançar dúvidas quanto à virtude justifica lavar
a honra. Ninguém suporta enlamear o bom nome de sua mãe, mesmo sendo ela
responsável por esse mau-caráter filho da mãe. O pior dos bandidos pede
para não ser esculachado mesmo quando condenado à prisão perpétua. O
vizinho que sente vergonha de si mesmo por ver escoar seu tempo de vida
e nada fazer pelo seu semelhante, exige respeito. A esposa devolvida a
domicílio pelo amante, dia sim e outro também, não dá um passo sequer
diante de seus filhos para desmanchar o imbróglio, porque ao marido
interessa não desmanchar o patrimônio.
Todos farinha do mesmo saco, todos
mal-intencionados, como o mentiroso descarado aboletado em privilégios
que se declara isento, acima do bem e do mal, de não ser a favor nem
contra, muito pelo contrário. Dúvida por dúvida, preferível o impasse
suscitado por Luiz Edmundo em 1901, na sua memorável coleção “O Rio de
Janeiro do meu tempo”. A mais perigosa de todas as bebedeiras é a que
põe dentro do coração de um homem triste o favo da alegria e do prazer,
há quem morra de contentamento, como quem morre de dor.
O impasse do pomo-de-adão. Sobe e desce
freneticamente denunciando o que tem por engolir.