PELADEIROS
(Coréia - Fase classificatória)
10 de Junho de 2002
Que analogia se pode fazer entre o futebol
negro africano e o brasileiro? Somos gurus e paradigma por conta de um
contorcionismo, malabarismo e êxtase no prazer em jogar a bola entre as
pernas, que nasceram da mesma mãe. Preferimos dar mais um drible antes
de fazer o gol; abusar do toque de calcanhar, da letra e do
rabo-de-vaca; dar lençol, de chaleira, sem-pulo, bicicleta com rodas;
pentear a bola e equilibrá-la no pescoço, mantê-la colada no peito do pé
desafiando o otário desavisado a tirá-la; fingir que vai e não vai;
fazer embaixadinha em direção ao gol ou para matar o tempo; empurrar a
bola pro fundo das redes de bunda; repousar a chuteira em cima da bola e
mirar o gramado e adversários no meio do jogo como se fosse o dono do
mundo; adoramos sair jogando e abominamos a bicanca e a bola pro mato
que o jogo é de campeonato. Amarelamos tantas vezes quanto for
necessário, sem o menor pudor, de pouco valendo a biografia.
A diferença reside na canela mais dura, nos músculos menos
propícios a distensões, na propensão a choques escalafobéticos que
provocam risadas, nos maratonistas que correm descalços, no ser magro
que dói e render que nem uma vaca premiada. Atletas de excelente estirpe
num continente onde a fome é abissal e o sertanejo é um forte. Nós
preferimos evitar o contato, bater de frente, optamos pela meia-lua,
lugar de sexo é na cama, a homofobia é fato, porém, nos toquinhos,
totozinhos e firulas não nos incomodamos de oferecer a bunda para
proteger e manter a posse de bola.
Não há lugar para pipoqueiros na África se o leão é
exaltado nos hinos, tirar o pé nas divididas é sintoma de aculturação.
Por outro lado, estamos em vias de extinguir o peladeiro que se foi
junto com os terrenos baldios das capitais e periferias. Como esquecer
peladeiros de renome, Toninho Cerezo, Mário Sérgio, Júlio César Uri
Geller, Neto, felizmente ainda restaram Djalminha, Roger, Denílson.
Perdem campeonatos bisonhamente, precisam de uma bola para si e outra
para o jogo, só jogam numa faixa de campo ou passeiam em todas, se
descontrolam emocionalmente, provocam expulsões bestas, chutam a esmo
quando dá na telha, presepada é o lema. Escolha uma ou mais opções acima
e marque dentre nigerianos, senegaleses, camaroneses, ganenses.
Somos iguais em se fazer de malandro à campanha contra o
fingimento na Copa, capitaneada por dirigentes que viajam sem terem seus
vistos negados e mandatos cassados. Cavar pênalti, mostrar falsa
indignação contra as decisões do árbitro, fingir-se agredido ou
machucado, quem não se enfeita, por si se enjeita, esse é o repertório.
Brasileiros e africanos são artistas e peladeiros que
ainda emprestam romantismo à era da blindagem, em que foi fácil ao
Brasil assumir mais uma liderança com a nona maior frota de veículos do
mundo. Um valioso indicador para aferir o grau de criminalidade, os
veículos blindados apenas postergam o enfrentamento com o poder paralelo
que chacinou o jornalista Tim Lopes, assim distribuído no gramado:
setores esclarecidos da Justiça que se fartam às custas de alvarás de
soltura e habeas corpus, conselhos formados por presos recolhidos às
penitenciárias, ratazanas bacharéis a soldo, policiais a serviço e
tribunais do tráfico, organizados para fazer justiça certeira e rápida,
sob o fio da espada samurai, com direito a cremação do corpo em
cemitério clandestino chamado microondas.
O Arcanjo reconhecia que já estava “enxugando gelo”, antes de
sua microcâmera flagrar o aliciamento de meninas menores de idade em
bailes funk. Harém e feudos se complementam na ebulição do caldo de uma
cultura obrigada a despir da fantasia e forjar uma nova identidade, onde
a figura de vencedor e fracassado não estigmatize a sociedade. |