ÍNDOLE
FERINA
11 de Março de 2002
Em meio ao cipoal de violência que banaliza a
crueldade com seres sofridos que acordam para competir e diminuir as
diferenças que alargam durante o pesadelo, a psicanalista Simone Sotto
Mayor nos sinaliza uma violência mais sutil, mas nem por isso menos
peçonhenta. Trata-se dos pervertidos que consomem anos desqualificando
cônjuges, filhos e pais, parentela e amigos, seja em que ordem for,
colocando em dúvida sua bagagem, grau de desembaraço, capacidade de
análise com isenção, ou simplesmente atalhando seu ímpeto em decidir:
“você não consegue fazer nada sozinha”, “és um trapalhão”, “você nem
parece meu filho”, “até que enfim você se lembrou que eu existo”, “você
vai continuar calada e não me dizer nada?”, “você é mesmo muito
complicado”, “você banaliza o amor com essa história de prazer”, “você
está sempre me enrolando”.
Todas essas pérolas não chegam a provocar a morte física, salvo
eventuais suicídios, mas certo é a corrosão moral, o abalo emocional e o
constrangimento social, abuso esse equivalente ao estupro. No capítulo da
criminologia moral, encabeça o delito os atentados terroristas à sua auto-estima
e crença em si próprio para desestimulá-lo de a felicidade bater à sua porta e
anunciar um horizonte sadio, a salvo de meliantes que só sabem se relacionar
deixando sua marca no coldre: o despudorado egocentrismo.
Uma ave de rapina de olho no que você possui, no tens o que ele
não tem, sobretudo o prazer de viver.
O agressor conhece bem seu espírito doador e a vitalidade a
serviço da colaboração. Materialista, o classificaria de masoquista, à mercê de
que lhe tirem proveito, sua vida ingrata carece de maiores cuidados, há que
bolinar o coração mole de quem precisa provar sua força e valor, num desafio
quase que pastoral, de ajudar os outros a mudarem e ampliarem sua perspectiva
existencial.
Quando desmascarado, aí é que o depravado demonstra sua
verdadeira face e a violência se explicita na implacável missão de destruir seu
eleito a qualquer preço, apenas por ter se atrevido em abandoná-lo. É de meter
medo, pois não experimenta o abjeto sentimento de culpa, tem dó de quem sente
compaixão e se desvincula de todo e qualquer compromisso com sua história
oficial para atacar em legítima defesa. É o dia da vingança.
A vítima foi Seu Lázaro, cuja bondade, civilidade e educação
era reconhecida por todos os condôminos de prédio luxuoso à beira-mar, não
descurando de obsequiar com salamaleques quaisquer fossem os vizinhos, não
distinguindo inclusive a doméstica Serafina, paraibana arretada e atarracada,
que causava irritação nos moradores por fazer questão de só se utilizar do
elevador social, sendo ela portadora de lúpus - mal disfarçando uma
discriminação no único país do mundo que segrega elevadores e arrota esperteza
na coexistência.
Casada há mais de 30 anos, Dona Mercedes não se segurava sobre
as tamancas de tanto desgosto com as pessoas que a cercavam, notadamente Lázaro
que não a preenchia na dosagem que satisfaz, espargindo seus maus humores para a
plebe que a tudo assistia e nada falava.
Até o dia em que o seu apartamento fora escolhido pelos ladrões
enquanto ela tomava banho e cantava no chuveiro. Rendido, Lázaro bateu à porta,
avisando-lhe do assalto. Chance igual a essa só na próxima encarnação, fora a
felicidade que batera à sua porta. Desatou a gritar “polícia, ladrão, socorro” e
detonou o tiro que estourou os miolos do infeliz do marido.
Evidentemente que esse Lázaro tão cedo não irá ressuscitar,
ainda mais que sua amante, a pobre Helena, não se cansa de prestar vigília em
frente a seu prédio chorando a sua morte. Um brutal desaparecimento que nem ao
menos lhe permitiu entrar em sua casa e agarrar-se às suas calças preferidas,
que fazia questão de passá-las e deixá-las no vinco.
Com uma mão na frente e outra atrás, Helena apenas herdou as
memórias do alívio que proporcionou às chagas do malfadado casamento de Lázaro,
em compensação, Dona Mercedes reina agora absoluta. Se consolo serve, Lázaro
finalmente encontrou seu merecido repouso.