O ATO DE DOAR-SE
12 de Agosto de 2002
Chico Xavier era tão humilde que firmou o
desejo de desencarnar no dia em que o Brasil estivesse feliz. Missão
impossível, não para Deus que é brasileiro. Em 30 de junho de 2002 a
nação comemorava o penta, num domingo festivo que desviou as atenções
sobre o grande missionário do amor no retorno à pátria espiritual. Um
verdadeiro apóstolo ao debulhar o Evangelho, soube, como poucos, amar ao
próximo acima de todas as coisas. A largos passos, a personalidade do
século do estado de Minas Gerais removeu o preconceito de associar o
espiritismo a contatos de ordem sobrenatural e de mexer com esqueletos
guardados em armário, a pretexto de que em baú só se guarda meras velhas
recordações, para que reativar emoções, mágoas e frustrações afetivas
relegadas ao passado, quando não há porque ficar triste, a saudade é
natural, significa que estamos depurando e aprimorando os sentimentos.
Sua obra maior como mentor espiritual foi
de revigorar o cristianismo à luz da doutrina espírita. Contudo, seremos
eternamente gratos à sua caridade sem limites e sem fronteiras que o
levou a ocupar um espaço de destaque no coração, não só de espíritas
como também daqueles com outra formação religiosa, despreocupados com a
hegemonia de verdades absolutas sobre o que é melhor para a sua vida.
Ele conseguiu a unanimidade entre todas as crenças, apesar das
divergências marcantes no exercício da fé, ao levar alívio aos
sofredores do corpo e do espírito numa missão que explicita a real
extensão do que é evangelizar.
Alcançou a meta a que o homem se destina
de vencer os instintos aperfeiçoando os sentimentos, sufocando os
germens latentes da matéria, fazendo-nos crer que o amor é de essência
divina, porque amou a todos os irmãos, indistintamente, destruindo o
egoísmo sob qualquer forma que se apresente, seja pessoal, de família,
de casta, de nacionalidades. Não acreditou na secura e no endurecimento
do coração humano, pois que ele cede, mesmo a contragosto, ao verdadeiro
amor.
Conforme rezou em seu poema “Oração”,
Chico Xavier sabia que a vida é dolorosa, o futuro que nos espera não é
assim tão cor-de-rosa e os amigos acabam indo embora, contudo... creia
em Deus e nunca perca a vontade de viver e de ter grandes amigos, de
querer ajudar, embora muitos sejam incapazes de ver, reconhecer e
retribuir. Mas não perca o equilíbrio, a vontade de amar, mesmo sabendo
que você não pode sentir o mesmo que sinto por ti. Não perca a luz e o
brilho no olhar nem a garra diante da derrota e da perda, pois as
tentações são inúmeras e deliciosas de molde a perder a razão. Mas, se
não fores justo, lágrimas brotarão de seus olhos embotando a beleza e a
alegria de ver, perderá o amor pela família, que está sempre a exigir
esforços hercúleos para manter sua harmonia. A dificuldade reside em
doar este enorme amor que existe em nossos corações, pois tememos ser
subestimados e rejeitados quando a alma se torna pequena. Mas se a vida
é construída nos sonhos e concretizada no amor, bastam sementes de
alegria e esperança para mudar e transformar qualquer coisa.
Não é fantasioso e herético cruzar os
destinos de Chico Xavier com o de Hélio Delgado, filósofo de botequim e
figura polêmica na boemia carioca, recentemente desaparecido. O básico
de sua formação proveio do Instituto Militar de Engenharia (IME),
tradicional reduto especializado em gerar elites de homens de QI
elevado, apoiado na lógica da razão, pois só assim se produz com
eficiência e se chega ao sucesso. Com o tempo, aprimorou suas teorias
sobre cálculo e aplicou-as sobre seus ganhos e posses, prevendo que
poderia viver sem se consumir no trabalho até os 75 anos com o capital
que possuía. Se transformou num defensor ardente do ócio, se orgulhando
em proclamar ter precisado trabalhar apenas uma vez em sua vida. Sua
presença nos bares da cidade passou a ser tão freqüente que os amigos
sabiam qual o roteiro dos “escritórios” de onde despachava. Carimbou
todos os botequins nobres da Cidade Maravilhosa, mas seu bar de coração
sempre foi o Jobi, eleito o preferido para saideiras.
Apesar de ter cultivado fé em revoluções
para resgatar a igualdade entre os homens e no alternativo à vida careta
estabelecida pelo sistema, alimentou a maníaca idéia de que perseguida
era sua ideologia, capaz de provocar cismas e diásporas com quem se
indispunha. Pretendeu fugir à contingência e à precariedade da vida ao
tomar nas mãos sua própria liberdade, embebendo-se da ilusão de ótica
provocada pelo prazer com que ela nos brinda ao sorvê-la em goladas
generosas, relegando os riscos e responsabilidades que isso possa
acarretar ao sono pesado dos notívagos.
Orgulhoso de seu brilhantismo intelectual
a brincar de formular novos modelos de sociedade e de felicidade, nem se
apercebeu de que não se controla ou se manipula a lógica da vida, pois a
morte nos relega ao medo de ser abandonado à nossa própria sorte, daí a
crescente recorrência à eutanásia para abreviar o último suspiro.
Ao se inteirar de que iria morrer de
câncer no fígado, aos 55 anos, distribuiu seus haveres entre amigos,
garçons e instituições de caridades cujo número 80 expressa o tamanho de
sua verdadeira família. Legou aos aquinhoados um sentimento de eterno
agradecimento diante de um gesto de tanta generosidade. Jamais
esquecerão o gesto de paz e reconciliação, restará na memória dessa
família para sempre, como uma lenda que valorizou sua vida na passagem
para a morte. Hélio Delgado se dizia ateu e anarquista.