O PISCINÃO DE RAMOS
14 de Janeiro de 2002
O piscinão de Ramos é o grande must do Rio de
Janeiro, a cidade maravilhosa coalhada de praias da Sepetiba ao
Boqueirão, de Marambaia à Copacabana, da Barra à Ipanema, do Oiapoque ao
Chuí. Cavucada na praia de Ramos, o tanque desazulejado de 26 mil m²
forrado de material plástico se abastece de água tratada da poluída Baía
da Guanabara, no pior trecho, em frente ao maior centro universitário do
país, a UFRJ, fazendo fronteira com um CIEP e um Iate Clube dos tempos
que os fundos da baía era frente.
Cartão-postal para que os turistas ao desembarcarem próximo
dali no Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim, sob os acordes do
Samba do Avião saudando a musa do verão de Ramos, destrinchem à luz do
Corcovado, por que é a maior atração do verão carioca.
O acesso é através de veredas tropicais que perpassam as
favelas da Praia de Ramos e Roquete Pinto, partindo da Avenida Brasil,
que em qualquer estado é a via decadente que integra a periferia com o
centro de decisões da urbe, claro reflexo de que 30 a 60 mil banhistas
se divertem na certeza de que "tá tudo dominado". Pelo Terceiro Comando,
de camisa amarela, que proíbe o vermelho em biquínis e sungas, cor da
facção rival, no esporte que arrasta multidões, o tráfico de drogas. Dia
haverá de chegar em que os comandos vermelhos darão um cunho de maior
originalidade à razão social, se auto-alcunhando com ídolos que se
imolaram em nome da causa, a lista já é grande.
Apesar do baixo poder aquisitivo, não se descarta arrastão no
sucesso da onda. Apesar dos banheiros químicos, reproduz-se o incremento
do índice de coliformes fecais e de toneladas de lixo constatado em
outras princesinhas dos mares, tanto melhor, que se evacue essa merda da
baía e se complete a despoluição. Apesar da profundidade que varia de 1
a 2 metros, ninguém sabe nadar nesse país, por isso muitos afundam,
enquanto outros deixam afundar.
O piscinão terá enorme peso nas próximas eleições, pois a elite
pensava haver esconjurado Brizola com suas piscinas em CIEP no interior
do estado sem praia e elevador em favelas urbanizadas, pautada pelo
pavor de ele conseguir a tutela do voto do descamisado. Mas a democracia
caminhou e, em outras mãos, organismos internacionais passaram a
financiar refavelizações, antes execradas por conta de um getulismo
subjacente, em nome de um Rio de Janeiro amanheceu sonhando que
assimilou e incorporou-as totalmente no tranco do impeachment.
Mas a galinha com farofa, prato que todos brasileiros amam,
ainda está entalada na garganta. A praia de farofeiro e gente sem
educação é do tempo do onça, em que Nelson Rodrigues já sentia nostalgia
do Brasil ao atravessar o túnel Rebouças, a caminho do Maracanã. ZN
versus Zona Sul, litoral e interior, praia e roça, capital e província,
centro e periferia, chique e suburbano, Copacabana e além-túnel,
ipanemense versus tijucano, sul-maravilha e nordestino, provocam o
sarcasmo pernóstico e demolidor de que, pelo menos, diminuirão o afluxo
dessa gente ao sofisticado gueto, o lixo que produzem e o nível dos
arrastões.
O fato é que a partir do momento em que esses brasileiros se
integraram à população economicamente ativa e desceram do morro para
deixar de ser gente de cor para simplesmente gente, desconhecendo "o seu
lugar" ao freqüentar praias, festas e boates, colocaram em xeque a
discriminação num país considerado cordial, tolerante, pacífico e
conciliador.
Se não houvesse tanto bochicho em torno da bandeira do
comunismo e do MST, bem que poderia se aplicar à reforma agrária os
mesmos princípios do piscinão. Uma praia aos pés do povão na quentura do
asfalto selvagem corresponde a fixar mais gente na exploração da terra e
diminuir o inchaço nas megalópoles ao longo do litoral, por não
obrigá-la a se locomover em busca do paraíso perdido como sardinhas em
lata, devolvendo-lhe tempo, dinheiro e ganho na auto-estima. Aumentar a
produção agrícola e baratear o feijão-com-arroz contribui para reduzir o
desemprego, a criminalidade e a miséria que campeia.
Um garotinho que por aqui passasse pensaria ser uma peça de
propaganda política, afoito do jeito que ele é. Mas como votamos de
acordo com o que nos é sinalizado pelos institutos de pesquisa e
publicitários, através da mídia opiofágica, a ensinar que dependemos do
FMI, é melhor botar o olho no estrangeiro que desembarcar de pastinha e
tentar explicar o canto das sereias do piscinão, quem sabe se não
emplacamos mais essa e descolamos uma graninha malandra em favor desse
povo sofrido?
E quanto à discriminação, que é o que importa? Ih, ainda falta
tanta coisa, como segurar direito o talher sem parecer botocudo, palitar
os dentes e arrotar em público, mas isso é falta de etiqueta. Fungar,
escarrar e assoar com estrépito, nem um pouco interessado no pagode do
potente rádio de seu carro maravilhoso, mas isso é falta de educação.
Insistir em jogar o papel higiênico usado na cestinha ao invés de
simplesmente apertar a descarga é querer permanecer na cultura da fossa,
e isso é falta de classe.
Enquanto perdurar na sociedade o sistema de divisão em classes,
gêneros ou etnias, com a preocupação voltada para a linhagem, não
alcançaremos o epicentro do terremoto.