RESSACA
14 de Outubro de 2002
Procure não ser lógico, abstenha-se de
querer bancar o cientista político e adote uma linha de raciocínio a esmo.
O engravatado paulista rotula o carioca de
exótico e festivo no ato de votar, do socialismo moreno de Brizola,
amparado em Agnaldo Thimóteo e Juruna em pleno Sambódromo, desfilou na
passarela de Copacabana a altivez da rainha africana Benedita, e agora
ingressa no garotismo, uma tentativa de reedição do brizolismo,
chaguismo, indo mais longe, do evaperonismo, como recheio de uma empada
com azeitona para o caroço escapulir pela glote no propósito de
incomodar.
O carioca, de camisa aberta e medalhão no
peito, sempre gozou os adhemaristas, célebre pelo cofre com 2,5 milhões
de dólares confiscados de sua residência pela luta armada, que gerou o
malufismo, vitorioso nas pesquisas e derrotado nas urnas. O bastão
trocou de mãos e foi pro "Meu nome é Enéas", o recordista nacional de
votos no maior colégio eleitoral do país que permitiu, através do
quociente eleitoral, arrastar para Brasília deputados de 200 e 300
votos, que não acreditaram nos candidatos a presidente - anular
presidente significa tanto faz como tanto fez, um repúdio do tope de
quem se julga acima do bem e do mal, de quem se lixa para os destinos do
país ou vende apoio.
Rebanho por rebanho, quem mais cresce são
os evangélicos, o último censo acusa 15,5% dos brasileiros, relacionado
ao inchaço das grandes metrópoles que distanciou as instituições
católicas da realidade, refletindo-se na vitória de bispos e pastores
bem assentados, notadamente no PL, antigo reduto católico de Álvaro
Valle - rei morto, rei posto. Lidam bem com a contradição e a dialética,
dizem não misturar política com religião para cabalarem votos e o
eleitor encontrar a fé em Deus e em Jesus. Almoçam perdão e jantam
tolerância, como farão para dormir com tanta insegurança?
Na contramão do furacão petista que varreu
caciques, clãs e oligarquias, a família Collor e de cambulhada a
República de Alagoas, a plumagem dos tucanos, a bancada rural e da bola,
os boleros de Bernardo Cabral, os diamantes de Abi Ackel, os factóides
de César Maia, e incorporou Santa Catarina ao continente, com senadoras
e deputadas metendo o pé na jaca e confirmando que o eleitorado
desconfia cada vez mais da capacidade do homem em gerir uma sociedade
com 25% de chefes de família mulheres, eis que surge Rosinha Garotinho
nos fazendo esquecer de Roseana Sarney - um fantasma temido nas eleições
presidenciais, menos pelo caixa de campanha e mais pelos nódulos nos
seios de quem é calejada em cirurgias que passaram da conta.
A vitória no primeiro turno da
ex-vendedora de "Avon chama", liberta em definitivo a periferia do Rio
de Janeiro e o interior do Estado do jugo formador de opinião da Cidade
Maravilhosa, a democracia se locupletou com o triunfo em todos os
municípios da província, pautado numa vertente do assistencialismo que
reconhece o aumento da pobreza e da indigência como um fato consumado e
inconteste.
Ao não se poder esperar que abram mais
vagas de empregos, tornaram o remediado dependente do Estado e avalista
da perpetuidade do mecanismo eleitoral denominado fundamentalismo
nacional-evangélico, de tendência missionária em favor de reformas que
alcancem a redenção. Votou-se a benesse a crédito do político, que não
confunde credo com ideologia, mas espera que ele entenda o Deus que
habita no pastor-político a serviço da comunidade. A comunhão de idéias
traduziu-se na maioria gritante da população fluminense que
substabeleceu uma procuração para criar o Clube da Miséria, com capital
inicial avalizado por 65 mil cheques-cidadão. Sacia-se a fome e a sede,
só quem não tem, sabe o que significa o buraco no estômago. Quem romperá
primeiro o círculo da dependência? O provedor da galinha de ovos de ouro
ou o traído pela própria natureza?
O que é considerado retrocesso ou avanço
no processo eleitoral? Afundar o Titanic de velhos caciques? Ou renovar
os assentos nas casas legislativas? Privilegiar o econômico e privatizar
para alcançar o Xanadu do Primeiro Mundo? Ou se portar como líder
estadista na mesa de negociações e traçar o social em justas fatias para
que o apetite seja saciado?
O que desagrada na democracia é que ela
suscita mais perguntas do que respostas, impedindo de comemorar vitórias
justas de há muito aguardadas, em vista de ressacas cortarem o barato
com dúvidas que açoitam a cada golada. O mercado reflete essa
insegurança ao passo que a esperança cresce na mesma proporção. Fórmulas
econométricas não captam o âmago da questão, o que vale mais é ser um
bom partido para casar com sua filha, revelar quais são suas verdadeiras
intenções e manter uma boa aparência para que os domingos transcorram
tranqüilos.
Não há por que se preocupar mais, os
eleitores assumiram as rédeas da democracia no Brasil, se compenetraram
de que a repercussão de seu voto recai sobre suas cabeças quando os
traficantes mandam fechar o comércio e parar o tráfego. Não existe nada
que dê prazer e não provoque ressaca.