LINHA DE POBREZA
15 de Julho de 2002
Nem a alma mais mesquinha contesta que a
pobreza representa o principal problema do Brasil, embora há quem
discorde votando na ignorância, todavia, uma coisa não tem nada a ver
com a outra. Senão, os evangélicos que se multiplicaram a uma taxa cinco
vezes maior que a do país convertendo-se no segundo rebanho com 26
milhões de almas, propiciariam preocupações com falsos profetas,
pastores charlatões e políticos oportunistas, quando respondem às
necessidades de inserção, de agir conforme as regras do jogo e ordenar
socialmente uma população à margem da sociedade onde nenhuma outra ONG
ousa chegar. Se preocupação existe, é dos católicos que disputam os
fiéis a tapa, pois desconhecem o boca-a-boca, a panfletagem e as
técnicas de persuasão de um vendedor de enciclopédias.
53 milhões de brasileiros vivem abaixo da
linha de pobreza, 30 na faixa de indigência, a renda per capita de 3.600
dólares não é baixa, mas a miséria persiste ad nauseam e garante
o 74º lugar na ONU em desenvolvimento humano medido pela expectativa de
vida, educação e renda. A láurea é do Brasil, a pior distribuição de
renda do mundo. A concentração é tamanha que a fatia que resta do bolo
não proporciona condições mínimas à maioria à beira de um colapso
nervoso. Se houvesse maior justiça social, suavizaria o peso da culpa
que detona a estéril polêmica em torno das siglas ricos e pobres, grupos
mais e menos abastados ou a manjada luta de classes, já que o PIB per
capita é oito vezes superior à linha de indigência e quatro à linha de
pobreza.
Se a elite que comanda esse país
autorizasse, seria possível reduzir a pobreza de 34 para 8% da população
e causar falência na indústria de blindagem de automóveis. Entretanto,
sua ignorância não capta que o cerco se estreita e o motel dos
seqüestrados é final de linha, os helicópteros substituem as vias
públicas rasgadas a soldo da corrupção e o legado a seus filhos é de
envergonhar seus antepassados.
É bem verdade que uma empregada doméstica
é rica se comparada ao miserável nordestino tendo a seca como horizonte.
Mas será preciso atuar em outras frentes para que haja avanços além da
queda da inflação com estabilidade financeira e política que aumentaram
o crédito para consumo e mudaram o padrão de alimentação
feijão-com-arroz, pois se solução houve foi importar a proteína da carne
e do leite, enchendo a pança com biscoitos e chocolates, e pagar tributo
ao estrangeiro, que só investirão se continuarmos a nos pasteurizar.
Contudo, o Brasil gasta muito dinheiro
para ajudar quem não é pobre e pouco para ajudar aos pobres. Se
transferíssemos menos de 10% da renda familiar, a linha de pobreza se
elevaria acima do digno de lástima, com apenas 2% o fim da indigência,
caso o dinheiro fosse entregue, sem nenhum desvio, diretamente no bolso
do menos favorecido. Quando a caminho, as verbas não alcançam os pobres,
capturadas por segmentos sociais melhor organizados: metade do orçamento
das universidades públicas beneficia os alunos de famílias enricadas, na
seguridade social, 40% dos aposentados recebem apenas 9% de tudo que o
governo gasta com pensões, 65% é depositado no pico da pirâmide.
Se ridícula a distribuição de renda, a
desigualdade torna-se maior que a das décadas de 70 e 80 porque o Brasil
não pára de crescer, apesar da falta de solidariedade e humanitarismo. O
que não nos torna acionistas dessa sociedade, visto que cresce
economicamente voltado para não deter os efeitos perversos oriundos da
pobreza e nem mesmo sensibiliza os ricos a investirem nos pobres para
tirar um ganho com a expansão do mercado interno.
Qualquer modificação mais substantiva da
realidade brasileira terá de passar por um autonivelamento na
desigualdade de renda e da riqueza, sem o quê o cidadão brasileiro não
se nivela sequer ao cidadão do Mercosul, de Cuba, Costa Rica, Portugal,
Islândia, se medido em termos da ignorância que atravanca o progresso e
do nível de cidadania que organiza cacerolazos contra os
desmandos de políticos que abusam da boa-fé popular.
Como já se observa no aumento da
possibilidade de escolha na pluralidade de religiões que questionam a
hegemonia do cristianismo, seja na versão católica ou evangélica. Apesar
de vir mascarada no censo como sem religião, onde se acomoda, além dos
agnósticos, a nova era dos esotéricos, holísticos e religiosos sem
religião que combinam práticas orientais com efeitos terapêuticos e
medicinais. Que, somados aos kardecistas, umbandistas e candomblecistas,
discretos na assunção de suas identidades, e aos freqüentadores de
centros e terreiros que não perdem uma boa missa, configuram a cultura
católica brasileira que concilia crenças e práticas aparentemente
antagônicas, pouco afeita à demarcação de terrenos, falando o mesmo
idioma na espiritualidade. Enfim, uma cultura de incluir, não de
excluir.