ARMAÇÃO ILIMITADA
(Japão - Semifinais)
24 de Junho de 2002
A globalização adentrou definitivamente no
maior espetáculo da terra em que a Copa das surpresas só existe para
quem ainda acha que tem time bobo, se aproxima o dia do julgamento final
para quem se julga mais esperto do que os outros. América do Sul e do
Norte, África, Ásia e a velha Europa passaram no vestibular, até a
hegemonia anglo-saxônica - Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha - se
fez presente, muito embora os americanos reclamem de ser anti-higiênico
assistir troca de camisas ao final do jogo enquanto tomam o café da
manhã.
Mas é através da arbitragem na Copa do Mundo que se
entende a importância que a mãe representa na formação de mediadores,
verdadeiros diplomatas no exercício da arbitragem, a serviço de uma
moral reparadora de injustiças seculares, seja de ordem colonialista,
escravagista, hegemônica, genocida, persecutória, atentatória a seu
credo, uma salada de frutas ainda presente no inconsciente coletivo,
confirmando a tese de que o esporte é a menor distância entre fatias de
mundos que não se entendem.
A FIFA se rendeu à bandeira do mercantilismo, está para
existir uma nação de capitalistas, selvagemente liberal, e de
astigmáticos aficionados do regime de concorrência perfeita e do livre
comércio, que tenha conseguido eliminar o mercado negro onde a
verdadeira transação mostra a sua cara. Bandeirinhas de Uganda e
Trinidad Tobago assessorando o juiz egípcio Gamal Ghandour dão uma boa
medida de que quando se quer ascender David a Golias, basta erguer o
braço ou apitar, a autoridade passageira pode lhes garantir o futuro.
A Coréia aproveitou a magnífica chance de sediar a Copa,
que os africanos aprendam o dever pra casa e se tornem mais
profissionais, não é uma honra ir pra casa mais cedo com o seu futebol
que um dia irá resgatar a arte, se depurados arranjos e armações
ilimitadas. A Coréia tratou de arrumar a casa para alcançar o pódio, ao
desqualificar Portugal, Itália e Espanha, numa sucessão de erros de
arbitragem que invalida a hipótese de coincidência.
Os árbitros foram encontrando meleca em nariz limpo,
perseguindo a Itália contra a Croácia e México, até inventar
impedimentos apenas porque a regra é de difícil aplicação, exigindo hoje
o suporte de vídeos com alto grau de resolução que acompanhem a
velocidade do fanatismo coreano. Ofenderam e violaram a Espanha ao
apitarem perigo de gol, uma falta que ninguém explica mas que vale como
força de lei. Flagelaram o seu sonho em mudar o tenebroso percurso nas
Copas em contraste flagrante com o sucesso sem paralelo de seus clubes.
Amargas semifinais aquelas do Maracanã de 1950, quando tomaram um vareio
de 7 ao som de “eu fui às touradas de Madri, pararatibum, bum, bum”.
A Ásia não assimilou ainda as bombas atômicas lançadas pelos
americanos, ao passo que os japoneses se fingem de morto. Atingiu a
todos, embora a família asiática não reze unida como a família Scolari.
Era preciso reagir e pôr termo a esse estado crônico, primitivo,
repetitivo de novela, de sempre discriminar o oriental. A Coréia saiu na
frente se o Japão não se resolve, afinal, a relação entre coreanos e
japoneses sempre foi pontuada por ressentimentos, embora de língua e
tradições comuns. Em 1910, a Coréia se tornou colônia do Japão que
vencera a Rússia tzarista, iniciando uma expansão imperialista que o
levaria a ocupar a Manchúria e a Indochina, mantendo cativas 200 mil
coreanas e chinesas para servirem de escravas sexuais a militares
japoneses.
A Coréia foi a porta-voz de dar um basta à Europa poderosa. Mesmo porque
não é de bom tom alfinetar os Estados Unidos, por enquanto. Olhando por
esse prisma, a armação foi até justa, diante da moral do Primeiro Mundo
que sobretaxa, explora na barganha e tira vantagens que até Deus duvida.
E tudo passa em branco nos coquetéis. Afinal de contas, que mal há no
bêbado ser o herói da noite? Se todas as nações se constroem no curso de
brindes, na certeza do sucesso e no sexo prostituído que só satisfaz aos
donos do poder.
É imperioso chacoalhar a balança do poder, nem que seja de
brincadeirinha no futebol, revela o inconsciente dos coreanos. A ocasião
faz o ladrão, a cometer a pior das desídias, para confrontar a armação o
indicado é não se curvar em reverência, manter-se erecto e encarar o
ladrão - não tema, ele só atira pelas costas. Não se sustente na defesa
como a Itália e Espanha, se fixe na retina que ele hesita, todos
nascemos estrábicos. E aí é só meter, meter, meter mais, mais, mais
gols, e correr pro abraço.
É na montanha de abraços que se encontra a sutileza na diferença entre
picante e apimentado. Ambos proporcionam prazer de todas as formas, só
que o apimentado arde nas profundezas da alma, enquanto o picante não se
presta a invadir a alma, sequer molestá-la, apenas fazê-lo se sentir
diferente do que habitualmente acostumaram-se a vê-lo. O obscuro objeto
do desejo da Coréia.