DE MARAVILHOSA A CRUEL
25 de Junho de 2002
Por que um bandido precisa brutalizar suas
vítimas? Trespassar o corpo com espada de samurai, retalhar com
moto-serra, obrigar a vítima a comer a própria orelha ou fezes, aplicar
choques em filha de comparsa traidor. É preciso impor todo o tipo de
maus-tratos ao corpo de traidores. Cortar braços e pés, devagarzinho,
pedaço por pedaço, apenas por ser amante de uma do harém do traficante,
cuja alfabetização se baseou nos sultões das histórias de mil e uma
noites. Daí a decepar línguas e arrancar o globo ocular, positivamente
não, são xenófobos, que não respeitam catacumbas nem jardins da saudade,
preferindo a queimação antevendo o inferno que lhes espera.
O bandido é um invasor, perdeu a noção de raiz em que a
miséria era cordial, conciliadora e dócil, se podia subir o morro para
se deliciar com o samba de partido-alto, rico e pobre eram parceiros na
pelada. Ai de quem entrar duro no adversário hoje!
Com a falência do financiamento da casa própria, as
favelas incharam e se tornaram refúgio da bandidagem onde reina o
império do terror na disputa de pontos de venda de drogas, na medida que
começou a fazer a cabeça do bacana. Iniciou-se a demarcação de
territórios no vazio do poder, não subordinados a qualquer autoridade
exterior, com bandeiras e símbolos, os Estados paralelos. A população se
divide entre baixar a cabeça ou adotar seus ícones e cultura. Área nobre
as bocas-de-fumo onde o viciado tem de apresentar documentos e ser
submetido a revista antes de comprar. Matadores trocam idéias sobre
chacinas nas mesas do bar. O pedágio é fato consumado para impedir a
entrada de estranhos e manter à distância a polícia. O poder público não
consegue acompanhar o ritmo de seus negócios, ágil por não temer a
morte. Armados até os dentes, o seu riso de escárnio reflete o nível de
celebridade a que atingiram e o papel de presas fáceis a que nos
relegaram. Que mal há em se conviver com uma polícia ofendida e
humilhada se a violência não encolhe e não se seduz diante de projetos
de urbanização, saneamento e lazer para os favelados? Se a construção de
penitenciárias equivale ao sistema de co-gestão, vincular a selvageria à
má distribuição de renda ficou tão antigo quanto comunista sentir
saudades de Stálin.
A exemplo da Colômbia, os profissionais do crime
encaminham-se para o reconhecimento de que são mesmo os governantes das
áreas conflagradas, com troca de embaixadores, preferencialmente os
presidentes da Associação de Moradores, baseados em que uma certa
legitimidade da dominação do tráfico é preferível à tirania mais aberta
e amedrontadora do poder de polícia, já que a lei só se faz presente com
repressão e brutalidade em pocilgas. Quando a transgressão se vulgariza,
a punição perde a energia de reprimir e de costurar os vínculos sociais
rompidos. A próxima etapa será o asfalto, tendo a miséria como pano de
fundo e esconderijo.
O chefe do tráfico já exerce os papéis de polícia,
promotor, juiz e carrasco no combate ao crime mais hediondo, o de não
pagar a dívida de drogas. Também coíbem roubos e estupros na favela, o
que não os impede de desvirginar a adolescente mais bonita que pinta nas
paradas, insuflados pela banalização do sexo na mídia ou na publicidade
a tutelar o nosso imaginário. O alistamento para o exército do tráfico
explora o caráter de desdém com que a juventude encara a vida e alicia o
sangue bom, afinal rola dinheiro grosso cuja face da moeda é a droga.
Ninguém vira bandido da noite para o dia, o afunilamento natural dentre
os mais miseráveis e membros de famílias desorganizadas, analfabetos ou
semi, acaba por sugar os melhores. Nem da diversão nas favelas descuram,
o baile funk atrai uma nova clientela, uma autêntica bola de neve.
No curso das eleições, as elites criaram um baita problema para
si ao se obrigarem a blindar suas vidas e cercarem-se de seguranças,
isolados nos condomínios e shoppings centers, ao sabotaram a seu bel
prazer a evolução da cidadania, os direitos e acessos iguais para todos.
As elites se emburreceram com a perda da formação humanística legada por
seus avós, trocada pela tecnocracia do Primeiro Mundo cujo lema é não
compartilhar, é não abrir mão de privilégios.
Do pau-brasil às drogas, a Cidade Maravilhosa sempre foi um antro de
velhacarias, sob a batuta do Brasil Colônia, Império, República Velha,
ao sabor de donatários de capitanias hereditárias, senhores de engenho,
donos das minas gerais, vice-reis, autoritarismo, até que Juscelino
Kubitschek tirou o peso de suas costas e dividiu-o com Brasília.
Contudo, o Rio está perdendo a guerra para o crime organizado, o
atentado à Prefeitura com mais de 200 disparos de fuzis de uso exclusivo
das Forças Armadas, destruindo 55 vidraças de 30 salas dos 7 andares,
reproduz os piores momentos de judeus e palestinos, intimidando o
carioca a dar os seus próximos passos na corda bamba. Nunca levamos fé
na máxima que prevenir é melhor do que remediar.