REINAÇÕES DE PEDRINHO
25 de Outubro de 2002
Reinações é uma palavra que caiu em
desuso, se referia às crianças que não paravam quietas, a bulir com
curiosidade, na perspectiva iminente de aprontar alguma quebrando louças
e bibelôs, derramando leite na mesa do café da manhã. Monteiro Lobato
criou seu reino maravilhoso para os meninos da pá-virada e meninas que
faziam coisas do arco-da-velha, reinações típicas de tempos que
antecederam a 2ª Grande Guerra. Muito criticadas por adultos vigilantes
no seu encalço, ralhando pra ficarem bem mansinhas, não correrem tão
livremente nem sentar em qualquer posição, muito menos encarar os
adultos, quanto mais falar com eles de igual pra igual. Era de bom tom
manter o recato fechando as pernas ao conversar.
Nas Reinações de Narizinho,
Pedrinho planejava grandes aventuras no mundo da fantasia do Sítio do
Picapau Amarelo. 70 anos se passaram e o Pedrinho do estilingue se
transformou em telhado de vidro, junto com o País do Nunca, onde nunca a
justiça processa de forma que todos temam em desrespeitá-la. Esses
Pedrinhos têm cada uma:
“Prefiro minha mãe adotiva que me
seqüestrou a minha mãe verdadeira.”
Em 1986, uma seqüestradora roubou uma
criança do berçário de uma maternidade para convencer seu amante que o
filho era dele. Comovido, abandonou a esposa e quatro filhos, para
morrer feliz 16 anos depois ao seu lado. Enganado e obturado. Legando a
Pedrinho o dom de ser tapado.
A descoberta de um crime tão hediondo
quanto o estupro, obrigou Pedrinho a descer do céu e cair no inferno da
escolha de Sofia, entre a mãe biológica e a mãe que o criou. Sofia teve
de optar por qual dos filhos salvar das mãos do nazismo, se não
escolhesse nenhum, morreriam os dois. Elegeu a filha, com a consciência
espumando de raiva de situações na vida que é melhor não sobreviver.
Com que profundidade ele já revela saber
escolher a mulher de seus sonhos, afinal, segundo Édipo, a história de
todos os amores começa na mãe que cede suas tetas para nutrir a cria. E
com que apetite Pedrinho sugava, predispondo-se, prematuramente, a ser
enganado. Aliás, qualquer mulher que desejar furtá-lo em sua
consciência, o vídeo já estará à sua disposição para demonstrar onde e
como tudo começou.
Pedrinho é um prato cheio para Juizado de
Menores, defensores do não afrouxamento do limite para a culpabilidade
penal e pais que desejam ver seus filhos sob saia-justa: reforçam a tese
de que o menor, até prova em contrário, é incapaz, não tem personalidade
própria e não distingue chope de banana split.
O Pedrinho é o garoto ideal que regimes
ditatoriais procuram para dar exemplo e manipular a juventude, ao feitio
da ideologia que se deseja vender. Acomodado, não quer largar da saia da
mãe seqüestradora para enfrentar uma nova vida que lhe causará divisão,
culpa e mais indefinições e inseguranças que acumula em seu cofrinho. O
destrambelho nasceu do trauma de assaltos que não aliviam berços e
desmoralizam a instituição do coração de mãe.
Pedrinho não quer crescer, se comparado ao
Peter Pan. Só que Peter se divertia, duelava com o Capitão Gancho, não
temia jacarés, transava com a fada Sininho, apesar da diferença de
tamanho, além de ser chegado a um pó de pirlimpimpim - o pó que levava
Narizinho a flutuar no tempo e no espaço sideral é da mesma natureza com
que Sininho viajava no amor a Peter Pan, até hoje censurado.
Já Pedrinho, careta, ainda luta por não
sair do colo da seqüestradora, embalado pelas nossas leis que
prescreveram um crime tão bárbaro quanto o perpetrado pelos nazistas com
os judeus, ao separarem famílias e enviá-los para o crematório. Afora a
incineração, qual a diferença? A letra da pena da lei evolui no compasso
do carro de boi sob o temor do legislador e julgador se verem um dia
fichados e contemplados no Código Penal, pois que aos eleitores apenas
cabe enquadrá-los no artigo 171.
De que adianta Pedrinho protelar, se os 18
anos se aproximam e uma nova escolha de Sofia o consumirá como uma
língua de fogo cuspida pelo dragão da maldade. Logo virará um
homenzinho, e nos seus documentos terá que definir se é conivente com a
falcatrua, emasculando sua reputação, ou se a persistência dos pais
biológicos em procurá-lo 16 anos a fio, imersos no culto à sua imagem e
semelhança, será premiada com o fim das peraltices de Pedrinho.
O ser humano demanda sempre a
sobrevivência seja a que custo for, pagando o preço justo da humilhação.
Acorda, Pedrinho, estás a construir tua
sina! Ó rapaz, não deixe que te enfiem uma coleira e o transformem num
animal de estimação. Você já foi deflorado pelo seqüestro, já te
largaram no meio dessa vida que os adultos inventam para Pedrinhos,
Narizinhos, Emílias de Rabicó, Gatas Borralheiras, Quixotes e Alices no
País das Maravilhas. Se vira, ô malandro, tem pivete rendendo porteiro
de madame com três oitão. Larga do show da Xuxa, levanta da poltrona,
que o filme já começou para você!