DESAJEITADOS
29 de Julho de 2002
Podiam também ser chamados de desafinados
numa paródia à música de Tom Jobim e Newton Mendonça que João Gilberto
desafinou divinamente.
Desajeitado é ter duas mãos esquerdas
porque a direita não funciona. Derrubar o prato de cabeça para baixo.
Pingar colírio na narina e descongestionante nasal nos olhos. Enfiar o
dedo na dobradiça e fechar a porta. Ao se servir na mesa, segurar a
travessa saída do forno pelas abas. Derramar a taça de vinho em ato
reflexo a uma tolice ouvida. Ao se reclinar sobre o vapor da sopa
escaldando de gostosa, embaçar os óculos. Ao sorver os primeiros goles,
respingar-se apesar do babadouro. No bebedouro, injetar o jato de água
na narina ao invés da boca.
Desajeitado é calçar sapatos trocados, dar
topadas na quina da cama, deixar cair a chave do carro no bueiro,
derrubar a única árvore do quintal para construir uma piscina e derrubar
sua casa.
É comentar com seu melhor amigo, que irá
hoje lhe apresentar sua nova paixão, olha só quem está chegando no
pedaço, que mulher gostosa, com essa eu até me casava, e era a mulher do
amigo.
É observar pelo retrovisor os beijos e
amassos que sua filha dá no pilantra que conheceu em Búzios e beijar o
poste.
Desajeitado é o homem que mija sem
levantar o tampo da privada, é a mulher que exige o preservativo a um
passo da penetração, é o mendigo pedindo esmola na porta do cinema e
tossir nos seus córneos, e ainda se enraivecer com sua reação
discriminatória.
Em sendo coroa, é se fazer de menina,
jogar charme, botar uma saia curta e ficar puxando pra baixo tentando
cobrir sua parte mais íntima. E ninguém chegar junto, a não ser o “não é
bem isso que eu quero!”.
É não ter jeito o cara que recebe da noiva
insegura mais de quinze mensagens no celular e não conseguir dar um fim
na sua animalidade com a primeira vaca que encontrou.
Desajeitada é a mulher se levantar
abruptamente da mesa de restaurante em revanche ao homem não seguir o
roteiro da conquista prescrito por ela. É a mãe ser menos mulher que a
babá.
Desajeitado é lançar perdigotos na sua cara sem lhe dar o
direito de defesa. É o bom samaritano a querer decodificar os hipócritas
tanto quanto teimam em te enganar.
Ou seria estabanada, quem faz o asseio matinal e encharca
a pia do banheiro? Também pudera, trocar os óculos por lentes de contato
e se ver gorda, com celulite e caída nos culotes, é melhor continuar
míope!
O desespero aumenta com o diagnóstico do Censo 2000 de que
falta homem no mercado associado à pirâmide da solidão feminina criada
pela demógrafa Elza Berquó. Os homens dificilmente ficam sós, escolhem
garotas mais jovens, olham para baixo da pirâmide etária onde a base é
mais larga. Enquanto que para as mulheres está cada vez mais complicado
encontrar um parceiro a partir dos 35 anos, olham para o alto da
pirâmide, que é mais estreito. Que remédio, se as mães continuam a criar
os filhos da mesma forma, incapazes de lidar com esse novo ser da
mulher.
O choro é livre se não agüentam os fantásticos domingos
com aqueles gordos com cara de sapo nas mesas-redondas de futebol, a
tampa do vaso levantada, a chopada com os amigos, a pelada com os
colegas de trabalho e a indiferença diante de mechas e seios que
disputam a primazia com decotes. Por via das dúvidas, seguro morreu de
velho, joguem as lentes fora, é a era da bunda, o culote que se dane!
Quem nos confidencia é a vítima do golpe Boa noite,
Cinderela. Vai-se a uma boate, cerca-se de amizades promissoras que
dopam sua bebida e acorda com a polícia batendo à porta de sua casa para
saber se o seu carro batido é o mesmo que atropelou inocentes no ponto
de ônibus. Olha em volta e o apartamento revirado revela um vazio
existencial na carteira, em cima dos móveis, nas gavetas e armários, no
porquinho, o cofre.
No que enfia as mãos nos bolsos traseiros do jeans, sente
que por lá também andaram passando e começa a cantar confuso: “o orvalho
vem caindo, vai molhar o meu chapéu, e também vão sumindo, as estrelas
lá do céu, sentimental eu sou...”. Desajeitado também.