A ÓTICA DO CAPUZ
01 de Março de 2003
Perdemos a paciência, caminhamos para o
mesmo descontrole de Bush ao ver as torres queimando, tragadas pela ira
de Alá. Não é mais possível suportar exércitos de menores de idade a
soldo do comando de gangues de narcotráfico lançarem coquetéis Molotov
em ônibus apinhados de gente que se sacrifica para não aumentar o grau
de endividamento. Se o cidadão comum já não é preparado para atirar em
defesa de sua própria vida, imagine granada e metralhadora. Basta pôr o
pé fora de casa para a vida não valer nem um centésimo do que ganham
desembargadores com alvarás de soltura, senadores com grampos, fiscais
que se tornam sócios do Tesouro Nacional, e governadores que afiançam,
para combater a criminalidade, ser suficiente desinfetar palácios
governamentais, encher-se de brios e praticar o que Deus escreveu por
linhas tortas.
Fábulas de Esopo e La Fontaine não fazem parte
do imaginário de traficantes. Eles não têm tempo a perder com histórias
da carochinha nem com avós e pais otários não antenados com a realidade.
É pra ontem gozar de um conforto que só os bacanas merecem. Não se trata
de luxo, que requer refinamento, o reino do consumismo proporciona um
leque de atrações insuperáveis para quem teve de dividir o lar com uma
infinidade de parentes e agregados, aboletados em cima de um morro ou
cercados por um chiqueiro que os isola da parte rentável da sociedade -
o gueto.
É irreversível a sucessão de combates que se
anuncia em virtude da disposição demonstrada em não abrir mão de
explorar um negócio tão lucrativo e garantido. Vai que um dia os Estados
Unidos descriminalizem o consumo de drogas, antes da meia-noite
acompanhamos a linha de raciocínio e bau-bau! A fração politicamente
correta da sociedade voa por cima da rede do tráfico e abocanha mais uma
exemplar iniciativa do sistema capitalista ao endireitar seculares
controvérsias sociais.
E aí os marginais teriam de descobrir qual o
próximo vício do ser humano objeto de regateio, depois do tabaco, rapé,
ópio, absinto, mescalina, maconha, haxixe, cocaína, heroína, LSD, o
portal das drogas químicas. Não nos esqueçamos do grupo poderoso das
bebidas que inventou a Lei Seca nos Estados Unidos e gerou gangsteres
como Al Capone e milionários da cepa de Joseph Kennedy, cujo whisky
contrabandeado fez nascer uma dinastia. A exemplo do petróleo, que não é
droga mas mata pra caramba, se examinado com lupa os negócios que
acasalam a família Bush aos xeiques da Arábia Saudita - uma dinastia.
Antes que se transforme numa epidemia, o remédio
prescrito para eliminar essa escória da sociedade se encaminha para o
extermínio. De culpados e inocentes, ou inocentes e culpados, qual a
diferença? Se fosse para valer, o que não quer dizer que resolveria,
implicaria na desabilitação da polícia, sem perder mais tempo, corrupta,
em favor de um exército de elite inteligentemente treinado para dizimar
o Eixo do Mal. Ocuparia o vácuo deixado pelas Forças Armadas, sem perder
mais tempo, aposentados em seus afazeres domésticos alienados do
quebra-pau, salvo quando o arsenal é assaltado. Implicaria também na
ocupação dos morros e dos bolsões de miséria, onde eles se escondem e
controlam o avanço do inimigo.
Em suma, uma matança generalizada em represália
a bombas caseiras arremessadas em vidraças de milionários de Ipanema,
emporcalhando a imagem de cordial que o carioca se orgulhava. Os
brasileiros sempre enalteceram a diplomacia de evitar guerra, a última,
diziam, foi contra o Paraguai. Sem se dar conta dos efeitos da repressão
da ditadura militar para evitar a luta de classes e do conseqüente
aprimoramento da intelligentsia na metodologia de proscritos e banidos,
que, ao longo do tempo, desenvolveu uma urticária que pipocou no corpo
todo.
É a síndrome da perseguição, o bacilo. Distante
da paranóia, portanto. Quando resolvem parar de olhar para o seu umbigo
e partir para a ação, sai de baixo. São anos de desconsideração, repúdio
e rebaixamento, se tornaram perigosos, feras acuadas que não respeitam
uma sociedade sem cidadania afundando num mar de lama, insuflando a
fedentina emanada de uma convivência que se estreita e sufoca.
É um passo para elevá-los à categoria de
monstros, a exigir que os vigiem individualmente, olho no olho, cela por
cela, em presídios chamados de segurança máxima. Por homens encapuzados
da elite da Polícia Militar. Para que suas famílias não sejam objeto de
olho por olho, dente por dente.
Inverteu-se a ótica do capuz, quem não podia ser
reconhecido era o bandido, não cabe ao Estado temer o bandido, o bandido
é que tem que temer o Estado, afirmam as autoridades, “se alguém tiver
que morrer, que morra”, “mata quem tiver que matar”, no despautério da
exasperação ao não se agüentar o riso cínico de delinqüentes que
sucateiam a justiça, fazem a polícia comer na palma de suas mãos e
afrontam todas as classes sociais com um poder paralelo que passa por
cima dos poderes legais constituídos, como se fosse um trator.
Iniciamos o século XXI desmoralizando por
completo a questão dos direitos humanos, encontra-se um paralelo no
desregramento de valores que campeia nos bastidores dos três poderes e
na base da sociedade corroída paulatinamente por garotos, jovens, moços,
homens que desistiram de trilhar o caminho recomendado em escolas e
igrejas, no seio da família. A mesma dessintonia verificada na ordem
econômica internacional em que os Estados Unidos alcançaram a hegemonia
absoluta com a queda do comunismo e os muçulmanos se recusaram a
incorporar o continente dos excluídos, ao lado dos africanos. Em ambos
os casos, uma guerra suicida.
Resta saber o que Deus nos procura soprar nos
ouvidos... por que criou um Brasil tão rico de terras, praias e natureza
que matariam a fome e permitiriam comprar o tênis favorito de outros
Brasis? Por que criou os desertos da Arábia Saudita, Iraque e Kuwait com
um mar de petróleo no subsolo? O suficiente para fazer rodar a
engrenagem que nos empurra pra frente, como o burro ao arado?
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