PADRE
JOSÉ MAURÍCIO
01 de Setembro de 2003
Em cartaz no teatro, depois de 173 anos no
ostracismo. Autor de mais de 200 obras musicais, regente de orquestras e
corais, iniciadas pelos idos de 1794, quando obrigado a compor peças para as
missas dominicais. O que o alçou a Mestre de Capela da Catedral do Rio de
Janeiro, encarregado também pelo Senado de preparar a música para
festividades oficiais.
Apesar de sua precocidade, somente a vocação religiosa poderia
abrir caminho para o seu talento, visto ser pobre,
mestiço e filho de escravos alforriados. Como não queria
vivenciar Deus na castidade, sua mãe alertou-o quanto ao
impasse: se o amor for uma ilusão, Deus lhe dará guarida
para resistir e sofrer calado; se verdadeiro, quebre os
votos, seus filhos responderão por sua escolha. Se virá
alegria ou fardo, não cabe pensar no futuro, o seu
talento fará História no presente.
Para aceitá-lo como sacerdote, a Igreja
instaurou um processo a fim de comprovar os sentimentos
católicos de seus ascendentes. Confirmados os “bons
costumes” e o batismo de seus pais e avós, ser negro era
considerado um defeito. Havia que pedir dispensa do
defeito da cor para ser atendido. A falta de patrimônio
também era um agravante. Um comerciante abastado o
livrou da condição de zé-ninguém com uma casa na atual
rua das Marrecas.
Seu prestígio atraiu o interesse de uma donzela, zé-ninguém
como ele havia sido, que não se intimidou com a
diferença de idade ao lhe dar 5 filhos. Que ele não pôde
legitimá-los, amor e família vividos clandestinamente. O
que não impediu a troça do povo com a mulher do padre,
levando-a a abandoná-lo quando sua saúde começou a
debilitar somada à penúria financeira.
A chegada de D. João VI e sua comitiva aumentou seu prestígio,
ao ser encarregado de reproduzir as cerimônias
religiosas tal como em Lisboa, tornando-se o organista
da corte. Foi a gota d’água para a explosão da inveja e
do preconceito dos músicos portugueses, em uma enxurrada
de intrigas e maledicências, até de seus admiradores. A
ponto de ser rebaixado a arquivista da Biblioteca Real,
atrasarem a sua paga e endividá-lo, obrigando-o a
hipotecar sua casa.
Seus piores e melhores momentos foram quando chamado a compor
um réquiem e um ofício - sua especialidade na música
sacra - para encomendar a alma da rainha D. Maria I. Ao
mesmo tempo em que sua mãe morria sem que tenha podido
sequer assisti-la na agonia final. Compôs chorando a
mãe, seu guia.
Seu pior e melhor momento foi quando convidado por Sigismund
Neukomm, integrante da missão artística francesa que
veio ao Rio em 1816, a partir para a corte austríaca e
ver seu talento reconhecido prosseguir na evolução do
espírito que sua música exigia. Arqueado pelos duros
embates contra a discriminação, receou enfrentar outra
realidade e restar só em plagas distantes, preferindo
morrer na extrema miséria em 1830.
A arte exige que você seja fiel e se comprometa para que ela
corresponda. Tem que ser um caso de amor verdadeiro, que
não comporta vacilo ou escapismo, a entrega tem de ser
incondicional. É o único campo humano onde sonhos são
realizados. E renovados. Para que se restaure o prazer.
O amor busca este êxtase e invariavelmente dá com os
burros n’água.