COM QUE ROUPA
04 de Agosto de 2003
“Agora eu vou mudar minha conduta, eu vou
pra luta, pois eu quero me aprumar. Pra poder me reabilitar,
pois esta vida não está sopa, eu pergunto, com que roupa, eu
vou!”. Em uníssono, as mulheres cantam com Noel Rosa.
Preocupadas em dar um rumo à vida do homem, como corrigi-lo
de forma que se torne adequado a ela. Disfarçam palpitando
sobre como deve se vestir e rearrumar-se, já que, por
dentro, o futuro nos reserva
Matrix.
Ameaçam reverberando com “eu vou te mudar da cabeça aos pés”,
antes de sequer tê-lo beijado, muito menos iniciado o
namoro. “Você precisa de um personal style”. Mudar o
corte do cabelo, escanhoar ou aparar a barba, depilar com
cera o chumaço do ouvido, embranquecer os dentes, botar
aparelho para ter um belo sorriso e não causar maiores
vergonhas, afinal é o seu cartão de visita. Diminuir a
barriga para não pesar quando repousa sobre a sua. Se
bobear, lifting
no rosto, olhos e pescoço, correção da orelha de abano,
preenchimento nas bochechas, lâminas de porcelana nos
dentes, tingir o cabelo de louro para esconder os grisalhos.
Os sapatos, se tronchos e mal-acabados, revelam o caráter.
Elas tremem quando cuecas sujas são largadas ao
chão, como se houvesse serviçais para lavarem. Abominam o
pingo do mijo na tampa da privada, a toalha embolada em cima
da cama, ou o uso abusivo do palito nos dentes, que só
revelam o podre que se anuncia. O mau hálito que assinala o
fim do bebê, da criança, do rapagão, do homão, e acentua o
amargo do rabugento, do descrente crônico e da química que
revela a disfunção. A inhaca que o aproxima do defunto.
Vivemos uma era pré-clonagem. A indústria da estética nos
transformará em cobaia, modificando radicalmente rosto,
corpo e auto-estima, de forma a causar um impacto visual com
perspectivas ilimitadas que abririam o portal profissional e
amoroso. Resgatar-se-ia anos de ressentimento com sua imagem
bostejada, para investi-lo numa outra que será construída,
fazendo-o renascer das cinzas. Faltando encaixar-se numa
nova identidade - como se dependesse de sua vontade!
Confunde-se roupa com elegância, no afã de resgatar um estilo
que diga quem você é. Ou quem você quer que seja, na
esperança de mudar a forma de ser. Que mal lhe pergunte, ao
chegar junto de quem lhe eriçou o pêlo, por que alterá-lo de
cabo a rabo? Pressuposta de que canalizar suas fantasias
garantirá sua satisfação se conseguir amoldá-lo a seu jeito.
Amar é uma questão de imagem? Pois se é preciso admirar para
querer bem! Admirar o quê, a aparência, idéias nem sempre
nítidas ou o carisma ilusório?
No instante em que você mergulha na missão de mudar o amado,
sinaliza que deseja continuar você, fácil é adulterar o
invólucro. Um reflexo de quem não abre mão de aviar receita
médica e encomendar pacotes, sacando do seu arsenal fórmulas
e soluções as quais não aproveita.
Nem mesmo a maturidade assegura a transformação de diferenças
que, ao invés de afastar, justamente aproxima.