AMOR NA PENUMBRA
12 de Maio de 2003
Nascido em 1847, Castro Alves foi neto de
comerciante lusitano, filho de mãe nascida em berço de fazenda e de pai
médico que se dedicou à clínica de homens livres e escravizados. No
Brasil, reinava a cafeicultura escravista no Rio de Janeiro, São Paulo e
Minas Gerais, e a Bahia, onde nascera, possuía a segunda população
escravizada, com 300 mil cativos concorrendo com os 500 mil da corte no
Rio. A Bahia vivia segundo padrões africanos aclimatados ao Brasil,
efervescendo de negros, acorrentados ou libertos, enrolados em panos
coloridos. A onipresença da população escrava em Salvador determinou a
essência do baiano e influenciou a poesia antiescravista de Castro
Alves, que se antecipara aos movimentos abolicionistas.
A crise do regime colonial acelerou a extinção
do cativeiro nas repúblicas hispano-americanas, mas o Brasil se mantinha
como a única nação escravagista que mandou o colonizador plantar
batatas. A guerra contra o Paraguai serviu de pretexto para conter
pressões emancipacionistas, os negros serviriam de bucha de canhão e
iriam para a linha de frente. Quem lutasse, ganharia a carta de
alforria, carta essa que Solano Lopez não possuía na manga. Prometeram
até uma abolição da escravatura para 1900, e com indenização!
O maior poema abolicionista de Castro Alves foi
“Navio Negreiro” - expressão posteriormente envilecida ao denotar a
preferência nas conquistas amorosas. Ele tinha perfeita noção de vale
quanto pesa, mas que de nada adiantaria auto-reconhecer-se, se o mundo
imperfeito em que nos distribuímos se omite de assinalar e patentear o
divino no talento. No caso, o seu. Viaja a Pernambuco, Rio e São Paulo
para que avalizem suas facetas de ativista e poeta que se recusava a
admitir que a situação da mulher é uma contingência que não cabe
discutir.
A tuberculose matou os pais de Castro Alves e
gerou sua primeira hemoptise, o que não impediu seu romantismo de
impregnar poemas de castos cavalheiros que amavam platonicamente suas
julietas e dulcinéias. Em contraste flagrante com o romance tormentoso
vivido com a portuguesa Eugênia Câmara, artista dramática 10 anos mais
velha e mãe solteira, que escandalizou a sociedade.
Quando ela partiu de volta à terrinha natal,
Castro Alves acusou o golpe do rompimento e das dificuldades do
abolicionismo, ferindo-se com um disparo acidental no calcanhar quando
caçava no Brás, em São Paulo. Amputado o pé, sem clorofórmio, devido à
sua raquítica condição, a depressão foi inevitável e embarcou para a
Bahia buscando melhores ares. Em sua terra natal, Curralinho, buscando
alívio para seus sofrimentos.
Lá reencontrou Leonídia Fraga, amiga de
infância, que o acolhe e ampara nos meses que lhe restavam de vida,
desenvolvendo por ele um sentimento profundo e irreal, contentando-se em
raro conviver com o poeta famoso que derretia corações. Típico de mulher
interiorana que prefere não revelar seu amor e viver um misto de
angústia e prazer pela entrega desmedida e incondicional.
O que torna o amor puro e sublime, na visão do
romantismo, ainda mais quando fingiu não ver Castro Alves se refugiar
nos recantos do casarão colonial, em meio a lembranças que construíam
devaneios melhores que sonhos, porque poderia intervir na felicidade e
candura de passeios ao lado de sua amada, de olhos abertos.
Retribuiu com atenções e poemas dedicados à sua
devoção, como em “Anjos da Meia-noite”, “serias tu, donzela casta / quem
me tomasse em meio do calvário / a cruz da angústia, que o meu ser
arrasta!".
Depois que Castro Alves morreu em 1871, aos 24
anos, Leonídia casou-se com outro, teve uma filha que morreu aos cinco
anos, e logo se separou. Fiel a uma paixão que marcou a sua existência,
aos poucos se apartou da realidade e se acasalou ao passado em delírios,
extinguindo a chama da esperança. A imagem viva da morte em vida.
Misericordioso, Deus permitiu a ela, na
alienação, a felicidade plena e absoluta, almejada por todos os mortais.
Ao longo de 14 anos, enquanto esteve internada no Hospício São João de
Deus, em Salvador, desde 1913.
Ao registrar no estado civil a esdrúxula situação de separada
do marido e noiva de Castro Alves, carregava uma trouxa com poemas
manuscritos e receitas de doces preferidos do poeta. Nem mesmo quando
veio a morrer aos 83 anos, permitiu que alguém pusesse as
mãos sujas em sua trouxinha.
A tragédia suscita terror e piedade, o que não impede uma bela
e triste história de amor, na penumbra. De Leonídia ou Castro Alves?