SIRIS ENTRE
MANGUEZAIS
15 de Dezembro de 2003
O Rio de Janeiro é a cidade que Deus
elegeu para reinar sobre o mundo. Incógnito. Como escolher qual
praia irá lavar Seus pés ou em que trilha da Floresta da Tijuca irá
se achar? Se mirar na Lagoa enquanto figuras bissextas procuram o
Sobrenatural em Santa Teresa. Xingam o calor para deliciar-se com o
chope e, ao menor sinal de frio, riem das mulheres de casaco de
couro e bota. Só sendo carioca para compensar com bom humor os
impensáveis problemas que Pero Vaz de Caminha não atinou quando seu
queixo caiu diante das índias. Logo se mandou rezar uma missa em
homenagem ao espírito agradável que dilui seus defeitos e os torna
até atraentes.
Na maior intimidade, todos se tocam, se abraçam, cochicham
banalidades, sem se conhecerem. Se entreolham, escolhem-se e se
misturam, sob o abano de palmeiras, na esperança da cocada, branca
ou preta, fazer surgir o cravo e a rosa de uma democracia
miscigenada e sensual que adora se aglomerar em botequins de esquina
nas sextas sem lei. Libertos da neurose de se isolar, de não ouvir
gracinhas e se respeitar, criando a muvuca, uma rede de quilombos
destinada ao exercício de azarar.
Começou nas praias, quando perguntaram à Maria
Chiquinha o que ela foi fazer no mato. Se estendeu à Lapa, onde
prestaram enorme contribuição capoeiristas, travestis, putas,
malandros, ricaços e madames de cabarés e bordéis, eméritos
dançarinos que disputavam a bolinha da sorte para encontrar o amor
na calada da noite.
Como de noite todos os gatos são pardos, surgiu a feijoada para
excitar a aproximação de quem é quem travestidos de falsa elegância.
Jogadores de futebol, modelos, atores, músicos, escritores,
jornalistas, separados em convalescença, enjeitados, bicões,
esquisitos e chatos dividem o mesmo espaço na promiscuidade da fama,
sob o som do pagode que promove a ligadura.
Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Ai, que coisa mais
linda, mais cheia de graça. O contraste entre as montanhas e o mar.
Jamais se viu contornos tão majestosos em harmonia com cores que
alternam o foco da beleza. Só pode ter sido obra e arte de criança,
ao colocar o dedo na tinta e desenhar a sinuosidade dos morros.
Se Deus mostrou-se obcecado ao pintar a aquarela do Rio de
Janeiro, pode perfeitamente ter um ataque de prima donna.
Cansou-se das inúmeras experiências a que o carioca submeteu o Rio
de Janeiro. É bem verdade que Deus faz chover, mas não para provocar
deslizamentos em favelas. Tampouco imundície jogada nas praias ou
peixes mortos na Lagoa. Se furar túneis congestiona o tráfego e
abrir linhas expressas desenvolve o tráfico, que progresso é esse
onde bandidos pretendem impor respeito à cidade?
A lei do mais forte, por não agüentarem ser mais excluídos na
cidade de Deus. Atingindo o ponto nevrálgico de cidadãos
respeitáveis, politicamente incorretos. Com a droga. Tirando do
sério a população com o toque de recolher imposto naturalmente. Para
quem gozava da fama de levar a vida na brincadeira, que droga não
poder banhar-se em córregos e cascatas nas florestas que preservam a
nossa intimidade. Sabe-se lá o que irá sair do mato, o que
representa uma morte a mais ou a menos, se é tão fácil procriar e
nascer?
A paciência de Deus esgotou-se. Antes que a Baía da Guanabara
se transformasse num mar de óleo que, ao menor riscar de um palito
de fósforo, esturricasse sardinhas e manjubinhas. Abalando a
verdadeira vocação do Rio de Janeiro de coexistir com siris entre
manguezais, de pensar que aprendera a conviver com suas diferenças
étnicas a caminho da miscigenação. Minimizamos disputas ideológicas
e de credo, julgávamos que a cordialidade advinda de nossas raízes
brasileiras harmonizasse no carnaval toda e qualquer forma livre de
pensamento, ao rodar as baianas no repenique de tamborins. Nesse
ritmo, o tarol excitava no ronco de cuícas que abafavam o surdo do
bumbo anunciando o iminente fracasso a que homem e mulher estavam
fadados na Cidade Maravilhosa. O caos reinante tornou-os
incompatíveis para construir uma relação de amor.
Deus perdeu os escrúpulos e resolveu fazer uso de seus poderes
para intervir na desordem que se instaurou no seio da família.
Solidão não combina com casas dentro de casas, na medida em que cada
um se encerra em seu quarto com seu high-tech particular. Dependendo
do gênero, deprê ou de euforia absoluta, o quarto se transforma numa
fortaleza ou cárcere.
Deus abriu mão dos anjos e agiu de corpo presente, ao perceber
chagas em pessoas divertidas que alardeiam a alegria da vida,
causadas por amigos que não eram anjos. Ao fazerem mau uso do
carinho de quem lhes dedicou afeto integral. Apenas por se mostrarem
atiradas com seus olhos sinceros - preciosidades raras que
repentinamente desembarcam e se alojam num recanto especial de nossa
existência. Basta olhar de relance, já sabemos a que vieram. As
mulheres. Deus as pôs de índias, com penacho e tanga, pintadas para
a guerra.
Aqueles cujas qualidades se encontram retidas para
averiguações, necessitando serem desvendadas aos poucos, Deus
mandou-os despir-se, Darcy Ribeiro o inspirava. Desnudar o homem por
completo. Com uma flauta na mão. Atrás do som do uirapuru. Enquanto
Gaspar embrenhava-se na Mata Atlântica, levado pelas mãos dela.
Maiara, a índia tupi. Sabe exatamente o que fazer para obter
êxito em sua empreitada, devido à força de vontade e perspicácia que
Deus lhe confiou. Uma mulher maiúscula capaz de se ligar a um mesmo
homem por toda sua vida. Sem se casar com o casamento nem se
acomodar nos louros da família, submissa ao poder do amor. Não veio
para reeditar o Paraíso nem corrigir erros na gênese, mas para
coabitar num Rio de Janeiro sem vivalma, desvinculando-se da noção
de tempo. Com a incumbência de modificar as leis da sobrevivência e
na interferência que causa no amor. A caça não seria atributo
exclusivo do homem; nem o culto à beleza, da mulher.
O lar sempre representou uma idéia distante para Gaspar. Desde
os seus antepassados portugueses. Sua preocupação permanente era
manter-se nutrido por idéias alienígenas e a salvo de intrusos que
quisessem entrar na sua intimidade. Gostava de ousar sobrevoando os
escombros do Maracanã em sua asa voadora, alvo da sanha de
torcedores inconformados com derrotas.
Desapareceram garantias, amigos, situação e família. Gaspar
aprendeu a colher nas perdas. No fracasso, o espantalho da espécie
masculina. Originado na criação. Sua infância, a babá preparando seu
mingau e a mãe na cadeira de balanço pondo-o para dormir.
Maiara se especializou em experimentos com verduras, legumes e
frutas, de forma que a digestão não atrapalhasse o espírito da
coisa. Havia que se criar um relacionamento suculento, vitaminado e
duradouro. Acabou por descobrir uma terra verde que, em contato com
o ar da Floresta da Tijuca, expele um aroma que impregna o ambiente
e fez Gaspar se dirigir a tudo que tinha medo de reconhecer o que
tanto queria.
Ambos começam a plantar, desbelotando o solo por onde enfiavam
sementes na terra verde. Somente cavando o solo e mexendo com a
terra é que Gaspar criou coragem para amar de novo e procriar.
Procriar muito, afinal aquele subsolo já fora leito de filhos e
conhecera o selvagem do amor, que findou soterrado. Assustado com a
perda do céu onde só a imaginação se perdia, aninhou-se nos braços
de Maiara e, ainda como filho, fez da mãe sua mulher.
Gaspar se desobriga da responsabilidade de ser forte, corajoso,
empreendedor, sem enfraquecê-lo. Um milagre! Maiara testa os novos
alimentos que prolongariam a vida, equilibrariam o apetite e a
temperatura do corpo, estimulariam os sonhos e elevariam às alturas
a capacidade de ânimo e esperança. Erguendo um dique contra as
doenças. Com a melhor das intenções: retirar Gaspar da condição de
filho, convertê-lo num homem de verdade.
Finalmente, Gaspar conseguira espantar o medo de reconhecer o
que tanto quis e deixava escapar pelos anéis de Saturno, iludido com
a Via Láctea. Maiara despede-se do mito, deixando no ar se é obra de
ficção ou fraude em carne e osso. Resolve não mais se enfiar em
histórias onde é requisitada. Deixa de ser um espírito que cicatriza
feridas e cura doenças terminais, para se humanizar e viver uma
grande história de amor. Ela é filha de Deus, mas não tem vocação
para Cristo.
Fez-se a luz, o Rio de Janeiro é a Terra da Promissão, uma
salada em que a maçã do pecado virou suco.