PODER DE FOGO
17 de Março de 2003
Há que ser crítico, senão passamos por
estéreis, desenxavidos ou inútil paisagem cujo tédio nos mata, pois não
reflete nem discute e só levanta a crista se por capricho. Contudo, não
há que ter uma visão casta do mundo ou politicamente correta para ser
crítico, pois cada vez mais sentamos à mesa com ladrões tolerados e
dançamos em festas com fanfarras a escroques que ainda não levantaram a
lebre. E, em breve, o crítico é quem irá sentar. Senão parecerá uma
freirinha educada no Sion!
Também não adianta parecer expedito e
prestimoso, porque não aliviarão as chagas que causam enxaqueca derivada
do espírito crítico de hoje: o baixo astral da inveja, a barra pesada do
ódio, o apelo desabusado ao compadrio e a indiferença.
O intuito do crítico não é evangelizar, mas se
entregar ao incorrigível desejo de esmiuçar a vida alheia nos seus
mínimos detalhes. Não há que puxar tanto pelo passado, com saudades, nem
pelo futuro ser apocalíptico, através da dialética examina quanto a
certas coisas afirmadas se alguma coisa que não a afirmada
necessariamente se segue, a perseguir uma lógica aristotélica que até
hoje direciona o nosso raciocínio e conhecimento.
O crítico não é capaz de conviver com os simples
mortais em sociedade, por se bastar na crítica, pouco lhe alcançando a
besta quadrada com que o homenageiam por ser um deus que enxerga a arte
com olho de lince, a perpetrar injustiças pelo poder de fogo que cospe
de suas entranhas, comprometido com postulados e paradigmas estruturais
que embarreiram generosidade e casos de amor à primeira vista com a
arte. Ao censurarem o seu poder sensorial, dormem no ponto e perdem o
final do espetáculo.
De Aristóteles dominam a Poética, a mais
poderosa elucidação da literatura jamais escrita, mas desconhecem a
Física em “sendo o movimento eterno, se existe uma causa inicial,
ela também deve ser eterna, nesse caso, é forçoso admitir que há apenas
uma causa, a primeira a pôr as coisas estacionárias em movimento, e
sendo esta eterna, se constituirá em princípio de movimento para todas
as outras coisas”. Por admitir implicitamente Deus, preferem a teoria do
Big Bang na origem do universo.
Baseiam-se na afirmação de Wittgenstein de que
toda a filosofia era apenas uma incompreensão devido a erros
lingüísticos. Citam, como exemplo, o cineasta português João César
Monteiro que realizou a proeza de filmar Branca de Neve sem projetar uma
só imagem nos 75 minutos de duração no escuro. Apóiam-se em Sartre cuja
filosofia se articula a partir da liberdade de escolha do indivíduo, ao
escolher, ele escolhe a si mesmo. Mesmo que o contexto histórico da
situação pareça mantê-lo cativo e de mãos atadas, a liberdade permanece
com sua crença apaixonada pela independência na escolha. O homem está
condenado a ser livre, seria agir de má-fé esquivar-se à
responsabilidade pelos próprios atos, ao tentar racionalizar a
existência humana impondo-lhe coerência - o inferno são os outros.
Dizem que o tempo é o melhor remédio, exatamente
do tamanho das coisas que têm que caber dentro dele. O crítico que é
crítico ocupa o máximo de seu tempo, dando o que de melhor tem, na
teorização. Questão de preferência. Há quem opte por conseguir esquecer
mágoas passadas, uma dádiva divina, pois que deleta àqueles que não quer
ver mais.
Um homem não é senão aquilo que construirá de si
mesmo, somente deixará de ser figura decorativa e passar a existir, à
medida que se apercebe de seu papel. Sem idéia fixa não avança nem
queima etapas almejando o pináculo da ambição que cintila no futuro. Nem
alcança o coração do mais insensível dos seres, o teoricamente
inteligente, por não ser tão profundo quanto pensa, ao dar mais voltas
do que uma barata tonta. O mesmo homem-barata de Kafka que claudica nas
coxias com medo de entrar no palco e dar um recado que repugnará a
natureza de seu próprio intelecto. Claudica sem encontrar a órbita que a
natureza delineia para todas as inteligências fluírem.
Machado de Assis já assinalava em 15 de setembro
de 1862, “o pugilato das idéias é muito pior que o das ruas”. Et pour
cause de nossa individualidade, apenas somos viáveis se nos
compatibilizamos através do amor, na tentativa hercúlea de harmonizar as
diferenças.