FALAR SOZINHO
20 de Janeiro de 2003
O fato de uma criança brincar falando
sozinha.
Por não encontrar um interlocutor à altura.
Que pretensão!
Rematada tolice por se tratar de à altura da
fantasia, onde se necessita de um Sancho Pança que acompanhe as
travessuras de Peter Pan no encalço da Cinderela que virou abóbora,
quando foi desgraçada pelo Príncipe Encantado que se desiludiu com a
amada amante, que estava mais pra Bela Adormecida do que pra Fada
Sininho. A do pozinho que fazia voar para a Terra do Nunca e enfrentar o
Capitão Gancho, para provar que toda boa história precisa de um vilão, o
bom Deus não se cria sem o Diabo. Embora o Senhor dos Anéis ressalte a
importância do Bem para se construir a vida, em prevalecendo o Mal o
conto de fadas soçobraria no bosque encantado de duendes, hobbits,
guelfos, os sete anões e árvores que falam.
Foi mexendo com seus botões que Monteiro Lobato
desatou a Reforma da Natureza, questionando a jaca por pendurar-se de
galhos tão altos, que não justifica a uva proliferar do rés do chão e
subir pelas paredes das parreiras. Não se justifica é o petróleo, de
origem fossilizada, se tornar tão atual ao detonar guerras, não nos
deixando dormir com o barulho de pesadelos que nos deslizam para a goela
do Eixo do Mal, sabe-se lá em que continente ele se encontra!
Uma crueldade sem par Chapeuzinho Vermelho
perguntar ao Lobo Mau por que ele tem uma boca tão grande! Depois de
haver devorado sua vozinha. Ou bem se educa para ter medo de bicho-papão
ou o lobo mau se introjeta na sua pele de cordeiro e revela a verdadeira
personalidade que irá adotar. Deuses ou monstros?
Dá para brincar com alguém compartilhando tamanha fantasia?
Preferível vestir uma boneca, fazer comidinha,
pôr a mão na massa e esculpir, pintar o sete na aquarela, alegrar-se com
o piuí do trem, organizar o trânsito entre carrinhos, operar um tanque,
empunhar uma arma e metralhar, acionar um robô, montar o quebra-cabeça,
rodar o pião, tocar piano, soprar a corneta, sozinho! Bola ou búrica,
marraio, feridô, sou rei!
É por isso que se volta a falar sozinho quando
gagá, esclerosado ou descrente do mundo, remetido às delícias de seu
inconsciente. A diferença é o que move a criança rumo à fantasia, que
ela imagina ser perene, indestrutível, um refúgio acolhedor à prova de
adultos que regulam a vida com o relógio. Enquanto os idosos se apressam
em buscar o tempo perdido, antes que morram, atrás dessa mesma fantasia,
rebobinando a fita através de suas experiências, entre sucessos e
fracassos, na esperança de encontrar o elo perdido que faria adentrá-lo
no Shangri-lá.
E se o Shangri-lá fosse a caverna do Fantasma? É
bom avivar a memória dos prezados leitores de revista em quadrinhos que
os heróis se escondiam da realidade em cavernas como Batman, quando não
eram gays, lembra Robin.
Que embrulhada se confundimos Alice no País das
Maravilhas com o Mágico de Oz, Pinóquio com o Barão Münchausen, Pato
Donald com Popeye, Olívia Palito com Minie, Tio Patinhas com Tio Sam,
Pluto com Rim-tim-tim, Pernalonga com Pica-pau, Luluzinha com Bolinha,
Zorro com zorra. Descubra a diferença no jogo dos sete erros entre
Super-Homem, Capitão Marvel e Capitão América. De que adianta a capa se
a espada não funciona? Se as Miriam Lane nunca puderam sentir o gosto de
sua força, energia e senso de justiça, aí não há amor que valha a pena!
Seguro morreu de velho, aconselha-se a se
manterem na doce inocência da infância, no regaço de Dona Benta contando
histórias, comendo bolo de milho da Tia Anastácia, pois quando o Menino
Maluquinho descobriu o que significa a Supermãe, fugiu espavorido na
direção que o Saci Pererê apontava: no rastro da poeira da
Mula-sem-cabeça, a concubina do padre que nos assusta nos mistérios da
meia-noite.
Fugiu dos falsos sermões, dos pedófilos, de
ávidos sites a quererem explorar sua imagem, de tigres desdentados no
ardor de seus chicotes, de nobres guerras com falsa motivação, de pobres
irmãozinhos que cheiram cola sem entender o que aspiram, na esperança de
ser sugado pelo buraco negro da Via-láctea, onde tudo é branco no
cintilar das estrelas que polvilham o nosso horizonte, conseqüentemente,
o norte a que se abraçar.
Ah, o fato de uma criança brincar falando
sozinha! Que nem matraca. É para afastar o medo dos ventos que vêm do
Norte.