CARIOCA AMIGO
27 de Janeiro de 2003
Desde que os portugueses adentraram a Baía
da Guanabara e puseram os pés em manguezais e praias, a discussão em
torno da melhor forma de se aproximar dos estranhos, sem parecerem
alienígenas, causa rebuliço. O espelho como elemento de escambo convinha
à bandeira da exploração que iria se iniciar. Cunhava-se, a partir daí,
o caráter miscigenatório na fusão do explorador e explorado, no
interesse legítimo da Coroa. Que viria a dar o tom na forma
desavergonhada com que os cariocas se lançam ao seu semelhante, imersos
na dúvida se bolinam ou se deixam bolinar, se espetam ou se deixam
garfar, se acomodam o buzanfã na melhor poltrona ou se ficam cheio de
dedos, se deixam o patrão pensar que tá tudo sob controle ou se entregam
a rapadura sem o menor critério.
Esse conjunto de irracionalidades surrealistas
ao som de atabaques africanos que solenizavam o sangramento de galinhas
pretas em atenção a um desejo ou esperança de dias melhores, virou
cultura. Que nem assim impediu o buliço de cérebros estreitos no desfile
dessa mentalidade nas passarelas do Rio de Janeiro, desaguando
comentários desairosos a respeito dos cariocas, sobre a sua forma de se
aproximar, de fazer amizade.
Principalmente oriundo de paulistas, que
reclamam do carioca convidar sem sequer dar o endereço. “Passa lá em
casa! Não deixa de ir amanhã, tá legal?”. Ou então, dá o endereço e
depois finge até que não conhece quando se cruzam na rua. Alcunham os
cariocas de superficiais porque são capazes de abraçar e serem afetivos,
para depois esfriarem sem qualquer motivo. Em suma, não aprofundam a
amizade, giram em torno de ambientes festivos, sempre no quintal da
galhofa, não foi de graça que o Grupo Casseta e Planeta popularizou a
expressão “Fala sério".
Os cariocas contra-atacam com “desinteresse
mermo”, já que não rolou afinidade. Nada existira que justificasse uma
continuidade. Ou a gente tem que se encontrar por obrigação? Ou só
porque se conheceram no transcurso de uma noitada ou excursão, torna-se
obrigatório receber um na casa do outro?
O descaso é aparente e serve para dissimular o
engano de pensar que poderia ser uma amizade. A superficialidade é uma
forma de dizer para o outro que não sinto vontade de vê-lo de novo, sem
magoá-lo. E por que não rolou? Basicamente, porque as cabeças não eram
tão afins, como se julgou de início. Supunha-se que ambos poderiam
trilhar o mesmo caminho e isso não aconteceu. Como trocar energia, meu
irmão?
Os cariocas põem as cartas na mesa e se comparam
a maridos e mulheres, sempre em estado latente de tensão. Predomina um
estado de inquietação e insegurança em busca da paz, que jamais será
encontrada, face à obstinação na luta para manter o amor nas condições
normais de temperatura e pressão. Atormenta-se com a idéia de pensar que
escolheu o parceiro errado, e se mudar, corre o risco de não mudar nem
um pouco. Repercutindo e influenciando os padrões de amizade, de que
adianta trocar latitude e longitude se não irão atingir o objetivo, ô
parceiro?
Quiséramos ser iluminados para vislumbrar quem
adentra em nossos lares, se mete nas nossas vidas e penetra no rol de
amigos, a fim de não cometermos equívocos tão grosseiros. Laços de
ternura se desfazem entre namorados que viraram marido e mulher por uma
existência, entre companheiros que dividiram o mesmo teto talagada de
anos, entre familiares que negaram a ascendência do sangue, entre amigos
inseparáveis a ponto de outros se confundirem e trocarem os nomes.
João do Rio, na Gazeta de Notícias de 29 de
setembro de 1907, disse que o carioca é bem o homem das manias, o bicho
insaciável, toma um prazer ou um divertimento, exagera-o, esgota,
aborrece e abandona-o. Não há nada que resista a cinco anos de vida, o
carioca é variável como o tempo. Depois do bicho, maxixe, meetings de
oposição e propaganda, agora a moda são os cinematógrafos, a nova
epidemia que ultrapassou a febre amarela, a peste bubônica e a varíola.
O humor dos cariocas possui um sabor diferente
dos judeus ashkenazi, que no idioma iídiche, enriquecido por expressões
singulares de vilarejos na Europa Oriental, assim pragueja: “que caiam
todos os dentes de tua boca, menos um, e que este doa noite e dia sem
parar".
Diria um lusitano a castigar no palavreado: o
que tem o cu a ver com as calças? Ó pá, segundo o exposto acima, ou do
lado, o carioca não é como o francês, filosofa, filosofa... e se enrola.
Mistura afinidade, papo-cabeça, amor, afeto, traição e receia mudar de
pouso. Quem quer um amigo assim?
Espelho meu, responda. Por entre o reflexo do sol no espelho do índio,
Machado de Assis foi às origens em sua peculiar ironia castiça e
resgatou: “Felizes os cães que pelo faro descobrem os amigos”.