AUTO-ESTIMA
31 de Março de 2003
Diz-se de um vetor como a molécula de ADN
circular, à qual um gene pode ser adicionado, de tal forma que a célula
passa a apresentar as características contidas no gene adicionado e a
transmiti-las para as gerações subseqüentes. Conectados a essa cadeia
genética, os traficantes se encontram no mesmo rumo dos garimpeiros na
Califórnia do século XIX, na corrida em busca do ouro. Agora que
descobriram o veio, não irão se intimidar e assassinarão quantos juízes
forem necessários, visto que o ouro em forma de pó recuperou sua
auto-estima para se inserir na sociedade e ser respeitado. Ao menos,
temido, para ser admirado, ao melhor estilo de Osama bin Laden.
Vencida essa barreira, não aceitarão mais a
pecha de zé mané, refugo da sociedade, de barrados no baile. Não mais
irão ceder nem recuar, seja qual for o governo que se apresentar, não
importa se esquerda xiita, esquerda paz e amor, direita paulistana,
direita do acarajé, perdidos em cima do muro, ou crentes. A corrupção
como uma hemorragia que não estanca os autoriza.
O crime se organiza enquanto não se unifica a
Polícia Civil e a Polícia Militar, e as Forças Armadas discutem o sexo
dos anjos, apenas entram em campo de batalha se o inimigo cruzar nossas
fronteiras. O que obrigará o Brasil a falar o mesmo idioma entre os três
poderes, virar um jogo que está perdendo e decodificar a esperteza em
inteligência. Sem querer, o narcotráfico empresta sua valiosa
contribuição para tomarmos vergonha na cara ao não dar guarida a
demagogias baratas no enfrentamento, além de inibir rebotalhos do
Legislativo, tem grampo na parada!
Os traficantes contribuem também para a taxa de
mortalidade, que cresce na mesma proporção com que embalam o pó,
contratam planos de saúde e se acautelam nas reservas de sepulturas
adequadas à importância com que ingressam e se estabelecem na sociedade.
Como qualquer homem de negócios, a despeito de a Justiça e a Polícia
elevarem sua taxa de risco na iniciativa.
O traficante Uê terá seus restos mortais
transferidos de uma cova rasa para um jazigo perpétuo da ala mais nobre
do Cemitério do Caju. Em terreno de 3 m² coberto por mármore especial ao
custo de quase U$ 20 mil, encimada por um anjo da guarda de bronze, na
nobre companhia do Barão do Rio Branco.
O Barão foi o que se chama de vencedor nato.
Árbitro de pendengas fronteiriças que delinearam o tamanho do Brasil,
como as das Missões, do Amapá, a solução para o Acre, tudo o que tocava,
virava orgulho pro Brasil. Jogando para debaixo do tapete as atrocidades
sem precedentes dos tempos de Floriano Peixoto, dos degolamentos e
execuções sumárias da Rebelião Federalista, o massacre de Canudos, a
suspeita perturbadora de que estávamos construindo uma republiqueta de
bananas, e a onda nostálgica de que o Segundo Império não fora a regra
mas a exceção. O povo se agarrou às vitórias de Rio Branco como
cinqüenta anos depois lançaria mão das glórias esportivas para banhar-se
em auto-estima.
No entanto, o ganho na auto-estima não se fez
acompanhar, ao longo dos últimos quase cem anos, na distribuição de
renda e no bem-estar da sociedade, desviando a coragem e a iniciativa
para a quebra do compromisso de viver em paz; a média de mortes por
homicídios dolosos no Rio de Janeiro é de 34 por dia, em São Paulo chega
a 50. A ponto de corroer a imagem do Exército em que militares são
acusados de violar o sigilo de concurso para sargento, vendendo
gabaritos a candidatos e intimidando promotores, igualando-se a
marginais.
"Recorda-te que tu és pó, e em pó tu hás de
tornar". Quero ver quem é rico ou pobre, lembra, o que tanto nos
esforçamos para esquecer, o nosso ministro-filósofo Gilberto Gil. Mas
será que não tenho o direito de me indignar com a vizinhança mal falada
de meus ancestrais sepultados? Pelo fato de estar morto, não vale os
direitos invocados para os vivos, expulsando as más companhias? Mas se
espantar o traficante daquelas bandas, eu vou ser morto e dar de cara
com o bicho que irá me cobrar a discriminação. Só não poderá me matar de
novo.
E para que tanto esnobismo e elitismo em
questões do reino dos mortos? Para não ser ameaçado em vida no Dia dos
Finados? Face à tendência do clã do traficante frente à morte, vai daí
que me deparo com a parentela deles chorando mais uma vida perdida. Dou
azar de pegar aquele mau humor de cão louco. Em querer apagar o primeiro
cidadão com os bofes de justiça e paz.
Quer dizer que não tenho direito a escolher
minhas companhias nem na vida e muito menos na morte? É melhor assentar
a poeira e viver entre o bem e o mal? Que má vontade é essa com a
recuperação de auto-estima, se ainda não encontramos uma outra fórmula
para resolver nossas dissensões?
O que de fato incomoda é ter como companhia um
bandido ou guerrilheiro armado, ao lado de um barão vitorioso que redesenhou
nossas fronteiras para caber um povo moreno cada vez mais miscigenado, sem
dialetos e disputas religiosas, com espaço suficiente para todos nos acomodarmos
e sairmos da fase de extrair o fruto, pendurado na copa das árvores, por ser
abundante e não nos obrigar a pensar em mais nada, tornando a lei do menor
esforço, garantido o leite das crianças, como o ponto de partida para o processo
de acumulação de riquezas, vantagens e privilégios. Uma característica colonial
que perdura. E multiplica, como o milagre dos pães, fiéis adeptos de uma
ideologia que suga e sangra o Brasil.