BOLA DE CRISTAL
07 de Junho de 2004
Sylvia nasceu com uma predestinação: de
enxergar através da retina do homem como se fosse uma bola de
cristal. Desde pequena, se apercebeu de que a seiva do sangue é a
seiva do amor, envolver-se e enamorar-se por alguém sob medida vai
miná-la em lágrimas e cicatrizes, uma arte como tudo o mais, mas que
parecerá infernal de tão real, uma prisão se restrita a um recôncavo
ou concha do mar. O que mais a apavora é o zumbido de homens
incompreensíveis, como uma turba muçulmana, que, sozinhos, nada
representam, apenas trapos escondendo fantasmas, mas juntos,
valha-me Deus! Desconjuro! O inimigo figadal da harmonia.
De noite, eles saem com suas garras à caça. De algo para amar.
Que Sylvia constata, atônita, adormecido nela. Bela, em suas faces
pálidas, inquieta-se, se tem de ser assim para agitar o coração. Se
o mesmo beijo de amor que arrebata converter-se-á em pesadelo, no
beijo traiçoeiro que irá petrificar o desejo. Alma atormentada não
combina com sereia que escapa para o fundo do mar em busca de águas
límpidas que regeneram. Nascera procurando cigarros, desconfiada. A
testa enrugada de concentração, imersa num triste diagnóstico, exato
em número, forma e partes: o homem nascera para roubar a luz alheia,
exceção aos iluminados e humildes, conformados no máximo e no
mínimo.
Sylvia já sentia de longe, ao se apaixonar, que
seu homem iria aprontar antes que ele se denunciasse através de
algum gesto desavisado. Ao menor sinal não cabe o maior desprezo,
fazia parte de sua psiquê. Seu olhar já persegue, controla e prevê o
rumo dos acontecimentos na relação. Ela só se sente segura quando
ele manifestadamente se afirma feliz ao seu lado.
O amor à primeira vista. A paixão queimando por dentro como uma
úlcera que irradia o amargo a querer ocupar o espaço que lhe cabe de
direito, o teste pelo qual passará a relação. Se fazer de rogada
seria um pecado. Para quem atira pedras na sua janela somente para
ver seu rosto lindo realçado pela luz do abajur e apenas acenar. O
encantamento, quando fulminante, exige que a lua-de-mel se inicie
logo na primeira noite.
Ted era um homem de não mais delongas, de não se pautar por
regras. Dizia o que pensava e se insinuava como um ser instigante
que desencadeava uma reação. Soava como uma provocação para a outra.
Que correspondia ou devolvia na mesma moeda, alimentando a
provocação, se assim a entendia. No entanto, ele não saía do seu
lugar.
Blasé, descomprometido com a neurose dos outros. A interagir
num jogo contido que deixa dúvidas, mas não fere suscetibilidades.
Pois não se aprofunda nem paga pra ver, estabelecido
confortavelmente num nível onde a fantasia entra como proteção para
se preservar de ter que assumir uma postura transparente.
Porque é assim que as relações se estabelecem, sem termos o
autoconhecimento necessário, nem um detector de mentiras. Parece que
somos pinçados ao léu para nos juntarmos em espírito e carne. Um
condicionamento que a enlouquece por conta de uma visão merecedora
de canonizá-la como santa. Ela sofre e se martiriza em silêncio,
pois quer ver o real, não quer se enganar com o homem que amará
acima de todas as coisas. Mas também não quer ser a vítima da
compaixão de todos que a vêem como uma desequilibrada, à mercê de
homens que sabem o que fazem. Seguros de seu trajeto.
Na verdade, todas as pessoas dão sinais do que são. Contudo, é
mais fácil fingir que não existem diferenças, ou que será possível
conviver com elas, ou até assimilá-las.
Ted é uma pessoa envolvente por natureza, não elabora o seu
tipo, não cultiva o gênero, embora para o universo feminino seja o
sedutor nato, a despeito de não precisar mover uma palha pela causa.
Para Sylvia, esse é o tipo de homem que a atrai. Se fosse
outro, não se interessaria, na aproximação o desprezaria, no
relacionamento o dominaria, na seqüência perderia o mínimo na
vontade que restou, e provavelmente repetiria o que ela mais detesta
e acusa em Ted - mulherengo.
Mas não adianta, essa questão sempre parte de nós, de Sylvia.
Uma estrutura emocional de quem não possui uma auto-estima de sair à
rua com o pé direito. Acaba por empurrar o outro para fora de casa.
Devagarzinho. Pontuando em comentários sem a mínima importância. Com
perguntas a respeito de onde foi e com quem trocou idéias. Quem são
suas novas amizades. Ao trocar o horário, inverte o sonho pelo
pesadelo. Escarafuncha gavetas, recados mal-traçados, algum dado
comprometedor. De tanto procurar a prova do crime, confirma a
materialidade da suspeita. Se Ted iria ser condenado de qualquer
maneira... melhor tirar proveito da culpa!
Sylvia nasceu escrava da bola de cristal, a mente fotográfica
que revela o coração vagabundo que a conquistou e a empurrou para o
abismo. Seu desejo de morte, no entanto, é nada mais nada menos do
que transcender, de poder renovar-se desse ar contaminado de uma
desconfiança louca e avassaladora. Se morte houvesse, seria o fim de
um estágio e o início de um novo período superior a essa atormentada
vivência terrena.
A vida perde seu perfume, sabor, sua música e expressão, se
disciplinados restamos à mercê do medo que elogia a loucura.
Uma mulher orgulhosa, irônica e sensível à raiz, acometida de
uma lucidez total e de uma coragem igualmente grande, para enfrentar
sua intimidade de uma misteriosa eloqüência poética, combinando
desespero enfurecido e altíssimo nível de verdade que o mundo não
assimila, não dá guarida, sequer permite. Porque capaz de trovejar
palavras secas, como golpes de machado na madeira, sem rédeas, à
procura de um rumo que a desvie de uma progressiva extinção de
personalidade, num bater de cascos incansáveis, sem divisar no fundo
do poço que estrelas fixas ensinam o caminho das pedras a governar
seu destino. Longe desses inesquecíveis homens por quem se apaixonam
e que marcam, com ferro em brasa, sua felicidade.