INHACA
08 de Novembro de 2004
O odor pode desencadear desejos
inconciliáveis que o tirem do sério, uma sensualidade concomitante
ao asco que exala. Quando vem do todo, mesmo à distância, e
deslancha um mistério a ser desvendado, mesmo que o cheiro provoque
uma repulsa que obstaculize a aproximação. Não que o cheiro concerna
a lixo, pútrido como a cabeça de peixe, químico como a amônia, ou em
decomposição como a banana que os morcegos adoram. A curiosidade
desperta, posto que não é só o nariz que eriça em posição de olfato.
A boca também degusta em combinação com a língua, para explorar de
onde vem aquele cheiro estranho que seduz e afasta. Das axilas? O
mais normal, mas não é, seria azedo. Do mau hálito? Não, a bílis é
inconfundível. Do chulé? Não, logo empesteia o ambiente. Do cabelo?
Não, apenas xampu barato. Má digestão? Não se cogita, descarta-se de
cara. Restou a ação sudorípara de sua personalidade que acende um
rastilho de pólvora que alcança as partes pudendas, seja de fato ou
por imaginação. Somente examinando a inhaca in loco para se tirar a
dúvida. Até lá, a causa já justificou o efeito.
Quando se fala em odor, automaticamente já se sente a
fragrância dos perfumes franceses que oscilam, em seus extremos,
entre o veneno que atrai para trair e o doce balanço que fascina
para alienar. Embora se costume depreciar a pouca freqüência com que
a parisiense toma banho, tornando a fusão do bodum com o inebriante
olor uma infusão que repele. Nada que se estranhe, pois o queijo
camembert afasta os neófitos que não sabem o que estão perdendo.
Qualquer comparação não é mera coincidência.
Diz-se o mesmo da inhaca de idosos, como que
anunciando a passagem para a morte em breve. De somenos importância,
pois trafegam entre nós mulheres que ainda cheiram como se crianças
fossem. Para reforçar, usam até água-de-colônia. Há quem diga que é
um sinal inequívoco de imaturidade, não evoluiu o suficiente para
adquirir a inhaca de nossos malignos defeitos que orgulhosamente
incorporamos ao nosso trajeto.
A inhaca padece de uma discriminação que estigmatiza raças.
Entrechoca as diferenças entre o banho de banheira, de ducha e de
asseio. Agrava o fantasma da eugenia, em pretender dar um basta nos
incapazes sujos, ampliando a questão do mau cheiro para a negação
completa do indivíduo, onde concorrem outros fatores que não somente
a simpatia. Por que descaminhos a inhaca não nos levaria, se não
houvesse o amor em jogo? Sempre. Com uma atração sexual brigando com
o cheiro inconfundível de ser de cada um.
E pensar que o amor de verdade impregna o travesseiro, o
lençol, a alcova e a poltrona preferida. Que falta não faz na sua
ausência ou se a separação é irreversível. O único momento em que a
inhaca se torna sublime.