HÁBITO OU VÍCIO?
10 de Maio de 2004
Adão e Eva obrigaram o mundo a dividir a
maçã do amor em disciplinados e não-disciplinados.
Os disciplinados necessitam ser workaholic na vida em
família, como trabalhadores compulsivos voltados para bem criar os
filhos, a salvo das intempéries e más influências que rondam na
pretensão de desestabilizar o equilíbrio do lar. O objetivo, marcado
a ferro em brasa na testa, serve para preveni-los do perigo do
descaminho. Há que se manter na linha reta. Sob tensão, pois o
inimigo espreita. Condicionam-se a manter em bom funcionamento a
estrutura da célula familiar. Os jovens, por exemplo, não querem
largar a casa dos pais, por temerem a violência e o desemprego; são
favoráveis ao exame antidoping na escola . O bem-estar alcançado não
pode, em hipótese alguma, ser arranhado por más companhias,
quizumbas e desconcentração no futuro. Caso contrário, a cizânia se
instala; exige-se vigilância para que o mal maior não sobrevenha e
rompa com a harmonia.
A vigilância resulta num vício atrelado à
perduração da felicidade desencadeando mecanismos de controle que
estimulam a paranóia na razão direta de se proteger. Uma boa
desculpa é a segurança, outrora a saúde, no futuro, a criança se
tornar adulta antes do tempo. A brincadeira virar a sério. A
menstruação se antecipar. As gincanas se transformarem em testes de
inteligência, a finalidade é descobrir gênios. Os esportes deixarem
de ser lazer e porem em risco a vida. O computador substituir a hora
do recreio. Arrisquem largar um simples hábito para imaginar como é
difícil, quando não impossível, abandonar um vício.
O universo dos indisciplinados não é uno e coeso, já que a
anarquia prepondera. Pinçados ao léu: drogados, cujo vício os dirige
ao inferno psicodélico de Dante; alcoólatras, mergulhados num poço
sem fundo; tabagistas, rumo ao câncer no pulmão em alta velocidade.
Que diferença faz se a morte nas drogas chega mais rápido e no fumo
mais lento, se o ser humano se consome na insatisfação com sua
perspectiva de vida no século XXI, onde a morte vem sendo
banalizada? As drogas apenas aceleram o final desse filme trash.
Bons os tempos de inocência, um cigarrinho agora caía bem,
inofensivos os mata-ratos que se transformaram em cigarros de
filtro. Duas doses de uísque ao chegar do trabalho não fazem mal a
ninguém, acalma o espírito, não passa disso.
Quem garante? Parece promessa do noivo pra noiva na época do
tabu da virgindade, mal suportando esperar a hora dela chegar. O
mundo se dividia, então, entre os que tinham ido para a cama com
alguém e os abstêmios, uma verdadeira guerra fria que dependia da
coragem em ultrapassar essa fronteira para fundir as emoções de dois
universos antagônicos: a mulher ser obrigada a ter uma vida pura e o
homem um salvo-conduto para uma vida dupla. Eles, verdadeiros
professores, a ensinar na prática o que elas poderiam fazer com
outros se não implicasse em sacrilégio no casamento.
Mas se o casar correspondia a uma lavagem cerebral de cozinhar,
lavar e limpar, se os homens não as sentiam, não sabiam estabelecer
a diferença, e o clima de lua-de-mel, um Xanadu distante. Deu no que
deu, desorganizou-se a família, a prevalência no ato da conquista ao
Deus dará e ela o imobilizou ao ficar por cima - virou luta livre.
Antes que o caos se instalasse, uma reunião do condomínio se
esfalfou para pôr panos quentes na disputa. Em nome dos filhos e do
espírito santo. Interrompendo o confronto e arrancando a paz a
fórceps. O nome da família falou mais alto, uma acomodação
geológica. O que não impediu os descendentes desse legado de
reorganizarem-se em caretas - estabelecem os limites necessários
para a convivência - e viciados em papo-cabeça - os transgressores
da regra -, afinal, a divergência faz parte da evolução.
Como não há registro de cultura que não tenha sacado do nada a
cerveja, descoberto um chá e da folha enrolar um charuto, em
comemoração a um triunfo retumbante ou como sintoma de decadência, o
vício levou a melhor. Os caretas em regime de prontidão, os
indisciplinados a virar o mundo pelo avesso, o gato e o rato, uma
simbiose perfeita.
Hábito ou vício?