CRIADAGEM
21 de Abril de 2004
O Brasil é considerado o paraíso de gente
rica, uma criadagem à sua disposição para elevar o seu bem-estar e
proporcionar um upgrade no padrão de vida. Objeto de inveja
de estrangeiros, exceto quando aqui residem. Também pudera, no
Primeiro Mundo as lavanderias é que dão conta das roupas; passar a
ferro, nem pensar. Amarrotado é um luxo só.
Esse espírito crítico associa criadagem a servidão, emergente a
aristocrata. Se pensar mais alto, alcança a escravidão e vincula aos
abastados do colonialismo. A que se reportam com nostalgia do tempo
em que eles nos colonizavam. Como era bom o meu francês, do inglês
nem se fala, ah, a rica terrinha de Portugal, que saudades do olho
clínico da Espanha para queimar santos de pau oco! Basta uma
doméstica de coxas volumosas e seios fartos preparar uma deliciosa
bacalhoada que eles lambem os beiços e se fartam, esquecendo-se de
seu senso de justiça politicamente correto.
Contudo, nossa realidade é outra. Os traficantes
zés-manés já atiram do alto do morro em direção aos prédios dos
enricados e atiçam a fúria da sociedade, ao atingirem no meio do
caminho, indistintamente, babás, operários, crianças, professores e
policiais. A pretexto da guerra do tráfico que fatura 10 milhões por
semana só na Rocinha. Arranhando a credibilidade de favelas de
imensos contingentes da classe operária que, ao contrário dos
homens-bomba, não aposta que vai para o paraíso. Obrigando-os a se
retirarem para locais mais seguros. Pondo em efervescência uma luta
de classes que se acreditava latente. Como uma gripe incubada desde
que o comunismo fora posto ao chão. As diferenças são gritantes e só
não enxerga quem deseja manter seus privilégios no tropicalismo mais
conservador de que se tem notícia, onde ninguém experimenta nada -
tudo é falso rebate de propaganda enganosa.
Não é outra a razão de assassinatos cuja motivação é menos
latrocínio e mais de tirar dos que têm pros que não têm, a
sociologia da miséria, o marxismo de araque. Com que prazer
Garotinho, o governador de fato, procura as câmeras e exibe o
produto de seu marketing no quesito segurança! O pecado mora ao
lado, o malfeitor seria o caseiro do vizinho que pulou o muro e fez
justiça com as próprias mãos. Inconformado com seu analfabetismo.
O caseiro de hoje é o mordomo da Agatha Christie, havendo que
investigar a criadagem desses endinheirados que não cansam de
surgir. Despertando a cobiça de choferes, diaristas, faxineiras,
passadeiras, jardineiros e, por último, os seguranças. Essa é a tese
do filme “Assassinato em Gosford Park” de Robert Altman, explorando
a relação entre os nobres e seus criados na Inglaterra do período
entre as duas guerras mundiais: uma convivência de servidão com toda
pompa e circunstância, em que os empregados pareciam ter mais
orgulho de sua posição social do que seus empregadores. Sendo
tratados pelo sobrenome de seus patrões ao invés de seus nomes
reais, o título de nobreza é que determinava o lugar do pajem ou aia
à mesa de jantar da criadagem. Os esnobes ingleses discutiam seus
problemas na frente dos criados como se eles fossem parte da
mobília.
Não precisa ser nenhuma sumidade para descobrir que alguém de
dentro abriu as portas para o inferno.