CREPÚSCULO DE UM MITO
19 de Julho de 2004
Marlon Brando nasceu e morreu do mesmo
jeito: de causas não reveladas para explicar o “pirado” que sugeriu
ao Bertolucci, em “O Último Tango em Paris”, a famosa cena da
manteiga que entrou nos anais da história do cinema. O rebelde que
tornou célebre a imagem de motoqueiro com casaco de couro no filme
“O Selvagem”, de 1954. Quando quem levou a fama foi James Dean em
“Juventude Transviada”, mas que não suportou sobreviver sem causa,
morrendo num acidente de automóvel. Ambos contemporâneos do lendário
Actor’s Studio, cujo estilo naturalista sobrepunha o personalismo à
caracterização do personagem, falando para dentro e com uma tensão
predominando sobre a impostação, que atraía todas as mulheres do
mundo. Sem que uma sequer exigisse casamento em troca do sexo, uma
norma anciã ainda em voga na década de 50.
Emblemático de seu tempo, ao reunir talento e beleza,
incorporou o personagem Kowalski de “Uma Rua Chamada Pecado”, de
1951: o estilo cafajeste que traça a esposa e a cunhada, pirando a
última, internada num sanatório. O que nem assim assustou o
eleitorado feminino, enfadadas com seus maridos que, ao preferirem
secretárias, solteironas, domésticas e putas, não as satisfaziam
sexualmente. Como através de equívocos se chega à depuração,
poder-se-ia dizer que o efeito Marlon Brando abriu caminho para o
feminismo. Graças à sua capacidade de retirar a fã da poltrona e
colocá-la em seu colo, num contato íntimo reservado às amantes.
De mito, virou mito de si mesmo. Zapata, Júlio
César, Napoleão, pai do Superman e psiquiatra do Don Juan. Um
percurso eletrizante de um cavalo sem rédeas, de uma lancha sem
piloto, de um esquiador que confia na neve pavimentando abismos.
Mais um inconformista que nasceu sob o signo da alucinação,
ofuscando o senso de autopreservação. Até cair de pára-quedas no
Taiti, em “O Grande Motim”, de 1962, quando se apaixonou por Tarita,
a estrela do filme, e comprou uma ilha para construir seu refúgio -
inspirado em Gaugin.
Mas foi no papel de Don Corleone que se consagrou em
definitivo, graças à insistência de Coppola em ressuscitá-lo. Numa
interpretação de poucas falas, e parecendo que tinha um ovo na boca.
Para alguns, caricato, mais imagem do que ator, em batalha interna
terrível ao se opor à adoração de sua imagem, na qual se consumiu
melancolicamente. Bebendo e comendo todas, torrando dinheiro a rodo,
tornando-se patologicamente obeso e, por fim, castrando-se.
Imagem vista a cores e em tela grande em “Apocalipse Now”, de
1979, como um deus magnífico e assustador relegado ao ostracismo de
um ermitão. A perda de interesse confundida com homossexualismo. O
excêntrico e imprevisível Brando estatelado diante do seu
crepúsculo. Em que assistiu ao destino de um herói lentamente se
embaçar e perder o foco, quando seu filho Christian matou o namorado
da irmã Cheyenne e insinuações de incesto marcaram o julgamento,
levando ao suicídio dela posteriormente.
Para salvaguardar a família da dissolução, contratou um
esquadrão de advogados e agravou seu endividamento, que o forçou a
atuar em produções que exteriorizaram sua decadência. Terminou seus
dias sozinho num quarto-e-sala, restando como única companhia seus
dois Oscars - por obra e graça de “Sindicato de Ladrões”, de 1954, e
“O Poderoso Chefão”, de 1972.
Na síntese do crepúsculo de um mito, a própria evolução do ser
humano, senão a dele, mas a de outras mulheres que se serviram do
crepúsculo de machos e deram um salto para o futuro. Marlon subiu as
escadas da glória por entre seus diversos personagens e despencou
como reflexo de suas performances serem conseqüência direta do seu
ambiente familiar - palavras dele.
Imerso no paradoxo de considerar-se um filho indesejado de nós
que gerimos o planeta de forma responsável, ele vasculhou os confins
à procura de uma identidade que nos parecesse aceitável.