ARRUMAR A CASA
20 de Setembro de 2004
O comissário José Dirceu, depois que jogou
carga ao mar, livrando-se do Waldomiro das lotecas, voltou a falar
grosso, entortando o erre mais do que nunca. Depois de engessar os
xiitas, admitiu não ser um robô e revoltou-se com o lado zen de
Palocci de não ter fixação pelo poder - equivale a derrotismo. E
converteu-se na outra face de José Sarney, na confissão explícita da
evolução da espécie dos Zés, ao retocar fatos em tantas versões
quantas forem necessárias para explicar o dito cujo. Pois não é que
o homem não se cansa de esposar concepções e teses da bagagem
tucana, pressionado pelo exercício do poder. Quando põe a voz no
trombone, parece um presidente.
A última pérola foi assestar suas baterias contra o Ministério
Público, que, através de pequenas células, verdadeiras polícias
secretas, investigaria acima da lei, pautado por interesses
eleitorais. Do mesmo jaez de FHC e Eduardo Jorge, que acusavam o PT
de se servir das investigações dos procuradores para engrossar o
discurso de oposição e chamar aos costumes o poder de então.
Acostumado ao patrulhamento ideológico, Dirceu quer agora pautar o
Ministério Público - uma oposição que se perdeu no caminho de Meca.
O temor do abuso não pode ser um pretexto para
amordaçar o Ministério Público, o maior foco de democracia nos
últimos quinze anos. Tentativas solertes para impedir avanços, como
no combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Dentre os
seus maiores feitos, a prisão do juiz Lalau, a Operação Anaconda
(negociação de sentenças judiciais com juízes), a Operação Farol da
Colina (doleiros que evadiram divisas de envolvidos no caso
Banestado), a Operação Vampiro (compra fraudulenta de hemoderivados)
e a detenção de Ali Babá e os 40 ladrões da SUDAM.
Quem está no poder treme só de ouvir falar em investigação por
conta própria, ainda mais em se tratando de dinheiro de campanha
eleitoral que vai parar em paraísos fiscais. Nem sempre a polícia
tem independência para comandar sozinha inquéritos sobre seus
próprios elementos - predomina o corporativismo. Também pudera, se o
passado sujo busca guarida nas urnas! Uma média de 30% dos
candidatos do Estado do Rio de Janeiro responde a processos por
homicídio, estupro e tráfico de drogas. Basta acenar com dinheiro e
votos que os partidos abrem as pernas.
Se a nossa democracia não prima pela igualdade de
oportunidades, que pelo menos tente recuperar o prestígio das
instituições políticas, a começar pelo alto número de candidatos com
antecedentes criminais. Há que se viabilizar e garantir o acesso de
nós, eleitores, ao prontuário dos futuros parlamentares, para não
falar de explicações pormenorizadas sobre a evolução de suas
fortunas e os negócios a que estão habituados, em suma, por onde
circula a bufunfa. Tornar o privado de conhecimento geral, no
interesse público.
Enquanto pairar dúvida sobre idoneidade, a conduta sempre
estará em julgamento. Isso sem contar a falta de coerência com seu
passado político, se julgar acima do partido a que está filiado - os
suprapartidários - e transformar promessas de campanha em meras
referências para se eleger. Portanto, não cabem crises de
irritabilidade se os governos ainda não aprenderam a conviver com o
funcionamento pleno das instituições dentro do Estado de direito,
por mais que as investigações sejam incômodas.
Irascíveis podemos nos arrogar ser. Com o Poder Judiciário que
arrasta processos, como o do Banco Nacional, cuja decisão em
primeira instância consumiu quase uma década. Comprometendo o Poder
Legislativo, que não consegue simplificar o ritual processualístico
e encurtar os corredores da Justiça, para nos dar a ilusão de que
existe uma ética. Atribuir à burocracia o kafkiano imbróglio, só
rindo do roto falando do esfarrapado. É falta de vontade, falta de
apetite para meter a mão na massa. E quanto mais se prolonga o
impasse, iracundos restamos e decretamos que só pode ser de
propósito. A inépcia. Um sentido de autopreservação - inconsciente?
-, pois o uso do cachimbo faz a boca torta.
Pena que esses eminentes homens públicos tratam de arrumar suas
casas primeiro.