DOGVILLE
22 de Março de 2004
Somos casados com amigos, família, colegas
e vizinhos, enfim, com uma convenção não posta em discussão que
pontua nossa vida. Quando conseguem nos encaixar na mira de seu
entendimento, começam a gostar de nós conforme a imagem comprada,
mesmo não estando de acordo com alguns aspectos de nossa
personalidade. Se necessitamos compartilhar o precioso tempo,
reconforta-nos saber o que esperar - gostando ou não - de alguém. Ao
menor aceno de mudança, o desassossego se instala. Tentam coagi-lo a
permanecer o mesmo. Receiam que você cause transtornos ao trazer a
essência das coisas à tona e obter um significado novo. O que lhes
daria o direito de se meterem onde não são chamados. Impingindo-nos
culpa e ingratidão, com o intuito de impedir que nos livremos de
todos os entulhos ao nosso redor - a começar por livros que nunca
conseguimos ler.
Como desembarcamos nesse planeta tão despreparados para
entendê-lo? Choramos quando não somos alimentados, de
relacionamentos em que aprendemos quem somos a partir do modo como
agimos para obter as respostas de que necessitamos. Por que
esperamos as primeiras rugas e cabelos brancos para correr atrás de
pistas sobre o que está acontecendo? Depois de sucessivos
adiamentos. Que não funcionam de fato. Se tivermos que desembaraçar
esse novelo, a hora é agora: menos estratégia nos relacionamentos e
mais olho no olho, para evitar a pior forma de solidão - a
acompanhada.
E se descobrirmos no amor sentimentos ocultos e
ainda não explorados que não se manifestam no atual contrato? A
parte incomodada resiste e se comporta como criança, que bate com os
pés ao impor um amor cem por cento devotado. Num ciclo de repetição
cuja intenção é perdurar o sonambulismo a que estamos sujeitos ao
despertarmos pela manhã.
O tempo é um marco sem precedentes na evolução da vida. O
suficiente para distinguir salvação de destruição, ansiedade pelo
êxito de fracasso nos empreendimentos, angústia adolescente de
velhice solitária. Gastamos demasiado tempo com futricas que
alimentam invejas e não nos detemos no prazer. Ocupados mentalmente
em projetar onde queremos chegar, não temos tempo de entender a
natureza do conflito e fluímos nossa energia para a insatisfação.
Tentando controlar a raiva, a campeã das emoções vulgares. O truque
para combatê-la é se fingir de morto: ela se exaure frente ao
silêncio, odeia não encontrar um adversário à altura. A raiva se
frustra se não consegue crivá-lo de culpa.
Somos impulsionados pelo medo em nossas vidas, compelidos pela
necessidade de avaliar e prever para sobreviver. O medo se tornou
moderador de apetite para lutar ou fugir. Ficamos com medo de ser
machucados quando nos aproximamos de novos relacionamentos, como se
estivéssemos sendo fisicamente atacados. Nos tornamos tímidos ou
demasiadamente agressivos. Faz parecer que sem a sua companhia
estaremos sujeitos a desastres inevitáveis, a pretensão do medo em
ocupar o lugar do amor.
Para vencer o medo dependemos somente da fé, posto que as
crenças nos dão apenas segurança, uma perspectiva de sentido e
direção no contexto. A fé não é condicionada pelo pensamento, remove
montanhas sem sabermos como. A fé inspira a criatividade, que opera
mudanças e o insere na realidade, a crença disputa para abocanhar
essa fé. A fé incomoda por ser vista como obsessão, a crença precisa
de crentes para erigir a religião. Daí o suicídio causar mal-estar,
por minar a fé que vive em nós e ao nosso redor.
As crianças anseiam se antecipar ao regime adulto, não aceitam
o legado que lhes está sendo oferecido. Já decidem por elas mesmas o
que é certo ou errado ao aclararem seus valores na escola, baseadas
na experiência de inúmeros pontos de vista que martelam sua cachola.
O ideal democrático se degenerou através dos gurus da manipulação e
das pesquisas de opinião. A espiritualidade se multifaceta
evidenciando a ruína das certezas religiosas, o ecumenismo é uma
questão de sobrevivência, a moral é relativa, o que restou em seu
lugar? Apenas a nossa integridade como guia para assumir uma
completa responsabilidade com a totalidade de nossa vida.
Caso contrário, viramos Dogville. Bastou a depressão econômica
arruinar seus cidadãos, para tirar a máscara de uma moral que
persegue e submete a maus-tratos quem está mais por baixo ainda, a
ponto de arrancar o pêlo e a pele até alcançar a carne viva. Sob a
capa de gente boa e simples, que nada mais almeja do que aceitação
como filhos de Deus, a encobrir uma vilania que desgraça a raça
humana e faz Hitler dar cambalhotas na sepultura. O extermínio é a
solução mais rápida para quem não quer pensar como nós somos e
colaborar para manutenção da espécie no atual status.