UM POUCO DE MALANDRAGEM
07 de Março de 2005
Cada vez mais se explora em filmes
biográficos as letras de músicas para contar a vida de grandes
astros, como Cole Porter em “De-lovely” e Ray Charles em “Ray".
Quem haveria de dizer que Ray nascido em “Georgia on my mind”,
de uma família extremamente pobre, assistira seu irmão morrer, sem
nada fazer, e ficou cego? Se iniciou no jazz, na heroína, num
casamento para restabelecer a base familiar que reproduziu o pai
ausente que nunca desfrutou. Misturou o vocal gospel com o blues, se
perdeu dentre as vocalistas para encontrar o verdadeiro amor, e
descobriu o som singular e inimitável de Ray Charles - rythm&blues e
soul -, a marca do gênio em “What’d I say?”, “Hit the road Jack”, “I
can’t stop loving you” e “Stella by Starlight".
Quem haveria de dizer que o bon-vivant do Cole
Porter cairia do cavalo, literalmente, depois de compor mais de 800
canções, pelo menos 100 eternizadas, com letras de grande
sofisticação e brilhantismo técnico? O gosto por uma boemia de luxo
e glamour em que circulou pelo grand monde europeu e americano por
entre as pernas de mulheres à mostra, despertando paixão nos homens.
A perna amputada tornou-o um recluso, apagando o brilho de sua
estrela ao som de “Night and day”, “Begin the Beguine”, “My heart
belongs to daddy”, “I’ve got you under my skin”, “Just one of those
things” e “I love Paris".
Custa um preço muito alto a esses gênios abrir caminho na mata
cerrada de gente estéril que considera mau exemplo para seus filhos
o bissexualismo, a apologia de bebidas e drogas e o sexo
indiscriminado. Enquanto dançam e cantam essas mesmas músicas que se
eternizaram e inspiram a nostalgia dos bons tempos.
Cássia Eller também assumiu suas diversas facetas através de
títulos de discos e CD’s como “Marginal”, de 1992, e “Veneno
Antimonotonia”, de 1997. Mixou sua vida com a de Cazuza em
“Malandragem”: quem sabe ainda sou uma garotinha, esperando o ônibus
da escola sozinha, calçada com minhas meias três-quartos, rezando
baixo pelos cantos por ser uma menina má. Eu só peço a Deus um pouco
de malandragem, pois sou criança e não conheço a verdade, eu sou
poeta e não aprendi a amar.
E pensar que os julgávamos escolados, com uma vivência ímpar a
traduzir os mistérios da atração e repulsa, nos fazendo companhia
quando queríamos sonhar. Desciam às profundezas do mar para criar e
caíam no fundo do poço. Sem o menor aviso, se atiravam de costas em
abismos e retornavam em memórias e delírios que nos davam alento e a
ilusão de haver ganho um pouco mais de malandragem.