TAPA NA CARA
10 de Janeiro de 2005
O tapa na cara vibrado no auge do orgasmo
é uma autêntica caixa de Pandora. Ninguém quer abrir. Um dos maiores
tabus da sexualidade porque associado à violência e considerado um
desvio de comportamento até hoje. Não se bate numa mulher nem com
uma flor, mas quem é que disse que o tapa não é provocado por ela
quando ele consegue quebrar sua resistência, tirá-la do sério e
levá-la a alcançar um prazer que manteve reprimido? Vinculam o
caráter dessa repressão ao ponto G, mas nem Freud arriscou-se a
tirar a fera da jaula para examiná-la.
Nelson Rodrigues irritou as feministas com o seu “mulher gosta
de apanhar” no tempo em que a profissão da mulher era prendas do
lar. Imagine se ele iria admitir que o homem gosta de apanhar
durante a saliência. Só se for para revidar. Mas aí você entrou no
jogo e assumiu a cumplicidade. Se continuou é porque gostou. Não
adianta discutir a relação num boteco ermo. Atiçada a curiosidade,
as argumentações falecem no portal da cama. O prazer é que será o
guia para incorporar a intimidade ao cardápio ou excluí-la em prol
da fraternidade.
Há quem levante a lebre de que, em termos de
violência, as mulheres acabam perdendo. Que o tapa é como se fosse
uma droga leve, na escalada sabe-se lá o que virá. O componente
machista está gravado no DNA, além de se propagar através de
partículas suspensas no ar. É bom não cutucar a onça com vara curta
porque dará a ele a sensação de domínio absoluto, de voltagem
semelhante ao “me deixa de quatro no ato” da Rita Lee. Interpreta
como uma rendição, ele a tem nas mãos, o diabo não é tão feio quanto
parece. Apesar das marcas do tapa.
A dimensão do tapa no rosto. A brincadeira, por assim dizer,
não é para machucar, tapa de amor não dói. Assim como arranhões nas
costas. Tapa no bumbum. Todos sujeitos a interdição, mesmo assim
dependendo da gradação. A não ser que tenha preconceitos e prefira
uma relação em que a vida só ganha sentido quando encontramos a
nossa cara-metade. Mas ninguém merece carregar nas costas o peso de
completar o que falta no outro. O amor não pode ser racionado, nem
desejos que extrapolam o chinelo velho para um pé torto reprimidos.
Sexo não é sacanagem, encher o amor de regras e princípios condena à
marginalidade um prazer na fronteira do perigo. O passo em falso
propicia o recuo diante de uma situação que foge ao controle, daí o
receio generalizado e a tendência em evitar o tapa na cara. Para as
águas do lago voltarem a ser plácidas e a anulação se fazer
presente.
O tapa na cara bate de frente com o afago no rosto com que se
inicia o namoro, põe o carinho em xeque, afasta a ternura, simula
uma aparente desarmonia a pretexto de adicionar mais tempero na
sexualidade e quebra a utopia da completude. Neurose pura permitir
implantar o germe de um sintoma que visa acirrar a dependência,
expandir a posse e injetar adrenalina na veia do ciúme que vincula
um ao outro no tapa. Em nome do amor. O estalar do tapa desperta
para a realidade do quanto é difícil acasalar universos tão
diferentes para constituir uma unidade. O nosso destino, totalmente
livre e aberto para dar o ar de sua graça e o toque que lhe faltava.
O tapa na cara é um detalhe de somenos importância.