JUNG
20 de Junho de 2005
O que a psicanálise mais revela é a sua
preocupação com a inquietude da experiência do sujeito com o
inconsciente e a sexualidade infantil no ser futuro homem e mulher,
pai e mãe. Antes que seja tarde e ele se torne esquizofrênico,
dissociando ação do pensamento perseguido por uma interpretação
delirante da realidade. Enquanto a leitura freudiana estava centrada
na neurose obsessiva, na histeria e na fobia, Jung avançou a
psicanálise à psiquiatria no campo da psicose, analisando os efeitos
do disfuncionamento cerebral na desintegração da personalidade.
Dedicou-se a experimentos de associação de palavras para chegar
a uma associação de pensamentos, buscando um acesso aos fenômenos
irracionais da psique que provaram objetivamente a existência do
inconsciente reprimido com forte carga afetiva para interferir na
sintomatologia das doenças mentais. Derivando para tudo aquilo até
então considerado incompreensível e sem sentido, como fonte de
criatividade e potencialidade, e não como depositário de vivências
dolorosas recalcadas. Para simplesmente imaginar, sonhar e criar a
partir de imagens e fantasias que estão aí no ar, cujo símbolo
representa a conexão de opostos, encurtando a distância entre o
consciente e o inconsciente que sempre desperta emoção.
A partir daí,
criou o conceito de complexo, não necessariamente vinculado ao
trauma sexual infantil como Freud afirmara, e responsável em grande
parte pelo comportamento destituído do bom senso e desadaptado à
realidade. Os complexos resultam de uma colisão entre realidade
externa e interna, como se pudéssemos representar: os instintos em
luta engalfinhada com a experiência emocional traumática a
interferir na performance do comportamento.
No entanto, foi no estudo dos fenômenos ocultos que Jung
encontrou o filão da criatividade inesgotável nas formas que as
imperfeições adquirem no filme que o mundo sensível roda nas nossas
cabeças, a senha para conhecer a fonte psicológica e neurológica da
civilização - o reconhecimento à alquimia da Idade Média como fonte
de significados psicológicos, alvo de perseguição inquisitória.
Distanciou-se de seu pai, pastor protestante, trabalhador e
dedicado à família, mas incapaz de corresponder ao que seu filho
mais queria dele: a transcendência do cotidiano e do formal na
relação, reduzido aos textos bíblicos e às explicações tradicionais
da Igreja - as coisas misteriosas que não temos capacidade de saber.
O dogmatismo do pai sufocava o filho, o que aumentou sua vocação
para a vivência da transcendência e de intensas experiências
emocionais de fatos, imagens e sonhos que incluíam alta dose de
mediunidade. Um reflexo de seu repúdio existencial contra tudo que
era reducionista e sem criatividade.
A transcendência elucida a genialidade de Jung e, ao mesmo
tempo, vincula sua obra ao esoterismo. A má-vontade para com suas
idéias é resultante de uma formação racional científica de peso que
extrapolou para o misticismo, decifrando o caráter universal dos
padrões de comportamento e como o indivíduo se desenvolve em
interação com o universo - a alma do Todo.
O pensamento materialista dos freudianos não perdoou o
discípulo que buscou os fundamentos do comportamento religioso no
inconsciente. Já os teólogos consideraram blasfêmia um médico
psiquiatra misturar fé com razão. Cientistas o desclassificam como
ocultista e religiosos, como herege. Seus estudos abarcavam o
simbolismo da santíssima trindade e o caráter sincrético da religião
combinando misticismo e teologia, que reflete a condição espiritual
do ser humano.
Ao perceber no aparelho psíquico que o indivíduo tem uma
tendência a vencer o seu umbigo e ser dois em um, Jung descobriu a
natureza bipolar da consciência que lhe permitiu abordar
psicologicamente os grandes paradoxos do conhecimento, como energia
e matéria. Expandiu a libido da procura instintiva do prazer sexual
para a energia psíquica, expressão de todo e qualquer fenômeno
humano na busca da totalidade - a ruptura entre Freud e Jung.
Remetidos à sexualidade, o homem e a razão deixam de ser o centro,
cedendo à primazia ao Todo em que a psique humana vive numa união
indissolúvel com o corpo, o gene pode sofrer mutações por causa do
estresse psicológico e o coração pifar diante de uma desilusão
amorosa.
O encontro com Richard Wilhelm, sinólogo e missionário
protestante alemão que traduziu o I Ching, teve um efeito
extraordinário na descoberta da sincronicidade: coincidência no
tempo de dois ou mais eventos sem uma causa comum que os
correlacione e explique por que, ao final, possuem o mesmo
significado. A sincronicidade é um princípio sem relação de causa e
efeito. Convida a se manifestar o todo-poderoso Inconsciente, uma
percepção desenhada através de imagens desprovidas de pensamento e
que gera seres ou objetos confusos, cuja natureza não pode precisar.
Parecem caprichos de sonhos fantasmagóricos que esvoaçam e o visitam
sem a menor cerimônia, atraindo imagens de nossos primórdios que
correspondem a temas mitológicos presentes em contos de fada e
lendas populares de épocas e culturas diferentes. Jung denominou-os
de arquétipos. Fermentam o inconsciente, no propósito de formar
nosso arsenal psicológico, povoado tanto de fantasias individuais
quanto de personagens lendários de um povo. São conteúdos de
experiência psíquica humana transmitidos hereditariamente com a
estrutura cerebral. Sedimentos de experiência constantemente
revividos pela humanidade que compõem o inconsciente coletivo de
Jung, herança humana universal cujo centro nervoso funciona em
sintonia fina, do mesmo modo que o corpo humano apresenta uma
anatomia comum. É o inconsciente que abre as portas para a
sincronicidade, em oposição à nossa consciência, que se acomoda
dentro de certos limites condicionados ao papel que desejamos
representar.
Ao se desprenderem, os arquétipos refletem o processo através
do qual o indivíduo vai descobrindo quem ele realmente é, se capaz
de tomar consciência desse desenvolvimento e influenciá-lo. Um
processo de cura pela transformação da alma e do mundo à sua volta.