JAMAIS SEREMOS
ESQUECIDOS
21 de Fevereiro de 2005
Van Gogh foi o maior pintor de todos os
tempos. Vendeu um único quadro em vida, conheceu a pobreza absoluta,
recusou-se a pintar gente que não trabalha, consagrou a vitória da
cor sobre o desenho, passou a navalha em sua orelha e, por fim, a
insanidade levou-o ao suicídio. A vida não fez sentido para Van
Gogh.
- Mas como, se a pôde expressar com tanta genialidade - de um
Deus -, embora importando no seu sacrifício físico e material? Hoje
ele se rejubila por ser o precursor do expressionismo ao escapar dos
estreitos limites do tempo. Teve que morrer cedo por não saber
conciliar a magnitude de sua arte com os desvãos de sua existência.
- Ah, mas se ele não tivesse sido tão injustiçado, quem sabe?
- A vida é recheada de injustiças, seu dom divino não lhe
concedeu a graça de saber lidar com os mortais e naufragou, deixando
essa magnífica obra. Em compensação, estará sempre em contato
conosco recebendo homenagens que poucos fazem jus, provando que não
morreu.
- Que besteira é essa de que ele não morreu? Ele está morto e
bem enterrado.
- Ah não, bem enterrado é que não está mesmo.
- De que adianta esses eufemismos se ele morreu de verdade?
- Mas como, se ele ainda está vivo? Presente, a exercer
influência, em pintores ou não, por suas pinturas ou pelo exemplo
das agruras por que passou em sua existência.
- E eu lá quero ser exemplo para alguém e virar mártir?
- Para ti mesmo pelo menos deverias almejar, é o mínimo que se
exige, senão tu és uma rolha flutuando no rio a caminho do mar onde
te perderás nas profundezas do oceano.
- Ah, tá indo longe demais!
- Ué, mas quando a gente morre não vai longe demais?
- Engraçado, pra vocês a vida só faz sentido se falar da morte!
- Não! Quando se nasce, aprende-se a andar e falar, a pensar, a
namorar, a casar, ter filhos, entrar no trem e realizar seus
projetos, se separar, voltar a se apaixonar, ter filhos, virar avô,
cuidar da saúde, tolerar o pensamento contrário alheio, doar-se e
olhar os lírios do campo. Onde está a morte aí contida se a
seqüência pertence ao mavioso espetáculo sinfônico da vida? A morte
apenas adentra para escurecer e dar um desfecho na obra que devemos
construir com desvelo sem perda de tempo. A lerdeza leva à leseira e
emaranha os passos seguintes, perde-se a clareza, adquire-se o mal
do século - a depressão -, começa-se a arrumar desculpas para o não
fazer, cadê o pato tá aqui tá acolá, vê a banda passar, insiste em
brincar de joão-teimoso, se considera eterno, enche o peito de ar e
morre que nem peru. De véspera. Quando fazemos de nossas vidas uma
obra grandiosa, a nossa marca fica para sempre. Jamais seremos
esquecidos. A morte deixa de existir como fim de tudo.
- Morte, para mim, tem uma tonalidade inquietante, irá me
questionar através de meus olhos que não poderão mentir por mais que
tente forjar-me de bom moço. A morte quer o que há de pior em mim,
não respostas fugazes, com a cara lavada e a alma exposta. Virar
pelo avesso o que me fez rir tanto quanto o que sofri, buscar uma
relação entre a metade infância e a metade velhice que deu sumiço na
fantasia paralisada no sonho distante. Em que nível eu dispus da
realidade como fonte de aprendizagem e me esqueci de não apressar o
tempo com minhas carências e anseios legítimos! Para descobrir quem
eu sou. Tenho medo de morrer e descobrir quão estéril fui em meus
atos.
- Você é como uma jóia valiosa e única, que só poderá ser
avaliada por um expert. Andamos pela vida pretendendo que neófitos
descubram nosso verdadeiro valor. Ninguém pode fazê-lo sem o seu
conhecimento. O que não dá mais é fingir que não vai morrer.