Coleção "Rússia de todos os Czares" - Fascículo 02
IVAN, O TERRÍVEL
De 1462 a 1505, Ivan III põe fim à suserania tártara, funda o Estado Russo
independente, cuja autocracia imperial seguiu as concepções do primado romano ao
anexar a maior parte dos principados vizinhos. A idéia era transformar Moscou
numa terceira Roma, sucessora do poder do império romano e bizantino, este
recém-extinto pelos turcos otomanos.
Seu neto Ivan, o Terrível, foi considerado
o maior tirano da história da Rússia, que reinou por 53 anos e acabou
morrendo louco. Sua infância explica. Aos 3 anos, seu pai morreu e aos
8, perdeu a mãe que, sob a ação do veneno, ainda teve tempo de alertá-lo
quanto ao futuro que lhe esperava. Cresceu observando as famílias
líderes de sua terra - boiardos - lutarem por parcelas do poder ao
assumirem a regência. Assassinando uns aos outros. Em público, os
regentes lhe reverenciavam, no particular tratavam-no avaramente, tanto
na alimentação como nas vestimentas, e pilhavam o tesouro imperial.
Instilando medo na criança Ivan que, aos 5 anos, participava de
cerimônias oficiais e presidia as reuniões do conselho de regência.
Durante uma dessas reuniões, aproveitou o
desentendimento reinante para criticar a má administração e o
esbanjamento de recursos. Sem que ninguém esperasse, ordenou a prisão do
regente, que, ao tentar fugir, foi morto por futuros aliados do futuro
soberano. Pouco a pouco, Ivan foi assumindo o poder, demonstrando que
aprendeu a matar ao liquidar com todos os parentes que restaram das
famílias regentes, antes que fosse tarde demais.
Coroado aos 16 anos, os sinos tocaram em
todo o país para celebrar o casamento com Anastasia Romanovna, que
exerceu um papel importante no período feliz do reinado. Vieram do
estrangeiro manuscritos raros e impressoras para publicar livros,
traduziram-se obras russas para mostrar ao mundo que a Rússia não era um
país atrasado, a despeito de o poder de ler e escrever abalar a
segurança do monarca.
Ivan IV, o Terrível, foi o primeiro
soberano russo a ostentar o título de czar (César), ao expulsar os
tártaros da rota comercial do Mar Cáspio, em 1555. Para comemorar a
vitória, construiu a Basílica de São Basílio na Praça Vermelha, notória
pelos bulbos de alturas e cores diferentes em torno da capela central.
Ao ver concluído aquele mimo tirado de um conto de fadas, ordenou que
cegassem o arquiteto responsável e ameaçou outros que tentassem
reproduzir seja qual for o rincão.
O gosto de Ivan pela grandiosidade o
tornou colecionador de tronos - todos queriam agradá-lo -, e se estendeu
aos prazeres da mesa. Não hesitava em presidir banquetes que podiam
durar de seis horas até um mês, onde centenas de convivas eram recebidos
e anunciados na chegada. As iguarias eram servidas em baixela de ouro ou
prata incrustada de pedras preciosas, bebiam em copos de chifre de rena
e conchas de ovos de avestruz. Entre fatias de corça e peito de faisão,
os criados mudavam de libré (roupa) e o czar, de inúmeras coroas.
Sua meta era alcançar uma saída para o mar
e a união da terra russa contra o invasor estrangeiro. Os rios nasciam e
percorriam a Rússia, mas a foz estava nas mãos de nórdicos, polacos e
livônios (Letônia e Estônia). Para negociar com a Inglaterra havia que
evitar o Báltico, contornar a Noruega e oferecer uma via de comércio
para o Oriente através do Mar Branco. Os boiardos e a Igreja Ortodoxa
teriam de cortar o excesso de suas gorduras e financiar soldados e
exércitos.
Ao subtrair poderes da aristocracia
hereditária e dos patriarcas, enfeixando em si, atrai o olho maligno da
coligação, colhe derrotas na semente da guerra e a czarina Anastasia
morre envenenada. Começa o período nefasto do reinado de Ivan, o
Terrível. Seu espírito vagueia, mergulha na paranóia, afunda na
dispersão e, em 1564, abdica repentinamente. Os pequenos proprietários
rurais o apóiam no confronto com os boiardos, arregimentam o povo, que
exige seu retorno. Ivan pôde assim ditar os termos de sua reintegração e
obter o poder quase absoluto. A renúncia como estratégia, um exemplo
para os ditadores.
Envereda pelo caminho da repressão mais
cruel, tortura, arrasa e mata, quem for considerado suspeito de
conspirar contra ele, próximo ou distante, será executado. Em 1570,
explodiram distúrbios em Novgorod, Ivan massacra o povo, acusado de
rebelião, e retira o poder remanescente das mãos dos boiardos. Deita
abaixo cidades inteiras e não alivia nem parentes seus, assassinando por
extensão suas famílias.
Para se proteger de traições, criou sua guarda pessoal, a Opritchina, a
primeira de uma série de célebres e mal afamadas polícias secretas da
Rússia. Vestidos de negro e em cavalos da mesma cor, os opritchiniks
saíam à procura de suspeitos que ousavam desafiar seu reinado ou que de
alguma forma mostrassem desrespeito. Quando não se virava contra
poderosas figuras da sociedade e as humilhava para evitar seu retorno à
dignidade de seus cargos.
Eram tempos de inquisição, em que se
promovia caça às bruxas, se incentivava o genocídio dos índios nas
Américas, a pretexto de que eram canibais selvagens, segundo os
jesuítas, até se discutir sua inserção no nosso meio, se estariam à
altura da nossa civilização.
Na conquista da Sibéria pelas tropas cossacas o império se expande. No
sentido inverso, avançou sobre o mesmo território, de proporções
continentais, anteriormente ocupado pelos mongóis, demonstrando que
aprenderam a lição no erro dos tártaros, assentando-se nas estepes da
Rússia Branca. Se a América era um continente por ocupar, a despertar
cobiças e provocar a semeadura do imperialismo, por que não a Sibéria?
Um prêmio justo, na verdade, os russos contiveram a investida dos
mongóis por sobre a Europa, fato esse não reconhecido nos compêndios
oficiais da História.
No fim de seu devastador império, Ivan, o
Terrível, inaugurou o exílio na Sibéria como fórmula de isolar os
oponentes da ideologia predominante e mantê-los em cárcere coletivo nos
campos de concentração sob o regime de trabalhos forçados, em nome de
uma causa justa. Apesar do frio poder ser seu coveiro, o exílio era
melhor que o castigo através de torturas sádicas e execuções, objeto de
sua ira tresloucada contra seus inimigos em Moscou, quando não assistia
pessoalmente. Chegou a espancar e matar seu filho primogênito que dizia
amar. Foi neste momento que ele perdeu a razão.
Conhecer a data de sua própria morte
tornou-se uma obsessão. Convocou 60 feiticeiros da Lapônia, que lhe
precisaram o dia em 18 de março de 1584. Na véspera, não suportou e
morreu de um ataque cardíaco.
Seu filho Fedor, débil e incompetente,
herdou o trono, porém, de fato, o poder estava nas mãos de seu cunhado,
Boris Godunov, que não titubeou em assassinar o pequeno Dimitri, irmão e
herdeiro de Fedor. Com a morte de Fedor, Godunov se autoproclama czar,
inspirando Mussorgsky na célebre ópera que leva seu nome. Eis que surgem
dois pretendentes ao trono jurando serem Dimitri, a criança assassinada
que teria milagrosamente escapado dos seus algozes. Os impostores foram
amparados pela Polônia que os usou como trunfo na disputa de fronteiras
com a Rússia, ao invadi-la em 1610.
Diante desta ameaça, a assembléia dos senhores feudais procurou um czar
capaz de agregar todas as facções em nome da soberania do país e
entregou a coroa a Michael Romanov, um príncipe muito respeitado,
aparentado de Anastasia. Arcaram 70 anos para expulsarem os poloneses de
seus domínios, arrancando a Ucrânia Oriental das mãos da Polônia e
consolidando as fronteiras do país até o Pacífico, fundava-se uma
dinastia que iria encerrar o ciclo dos czares três séculos depois, na
Revolução Comunista de 1917. Sua marca registrada, a servidão -
dependência da plebe para a aristocracia.
Onde pisou, a grama não cresceu mais. 53 anos de Ivan, o Terrível,
geraram 100 anos de convulsões originadas em disputas dinásticas,
sublevações e invasões estrangeiras, que redundaram no incêndio de
Moscou assinado pelos poloneses. Desforra somente concedida na 2ª Guerra
Mundial, no cumprimento do pacto Ribbentrop-Molotov, em que dividiu
irmãmente os despojos da Polônia com a Alemanha - ninguém melhor que o
russo para saber que vingança é um prato que se serve frio.
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