Coleção "Rússia de todos os Czares" - Fascículo 03
PEDRO, O GRANDE
No fim do século XVII, a dinastia dos
Romanov deu à Rússia um czar tão poderoso quanto Ivan, o Terrível, mas sem seu
espírito destruidor. Era Pedro, o Grande, o pai da Rússia moderna. De infância
difícil, como Ivan, assistiu a uma luta pelo poder seguida de mortes nos
corredores do Kremlin, quando seu pai morreu. Obrigando-o a se refugiar nos
arredores de Moscou na sua maioridade, pois Sofia, sua irmã mais velha e tutora,
não lhe passou o cetro, ambicionava ser czarina.
Ao percorrer o campo, aproveitou seu tempo
livre observando e adquirindo conhecimentos práticos, como construir uma
casa em alvenaria, consertar sapatos, extrair dentes cariados e mesmo
fundir um canhão. Ao descobrir no depósito imperial um barco à vela, de
proa pontuda e quilha arredondada, diferente daqueles com fundo chato
que navegavam nos rios da Rússia, e ao ser ensinado a manobrá-lo por um
holandês construtor de barcos, nasceu aí seu amor pelo mar que iria
durar a vida inteira. O que pesou na criação da Marinha, anos depois, ao
dotar o país com a sua primeira frota.
Medindo mais de 2 metros, Pedro tornou-se
um verdadeiro gigante provido de uma força legendária ao dobrar pesados
pratos de prata e abater árvores a machadadas em segundos. Seu apetite
era imenso, em refeições sem cerimônias na companhia de artistas
ingleses, escoceses, suíços, dinamarqueses, que viviam em Moscou. Foi o
maior incentivador da vodca ao organizar campeonatos, tomava 3 litros de
uma só vez.
Ao se aperceber de que a Rússia era
socialmente e tecnicamente atrasada, resolveu abrir uma janela para o
Ocidente, já como czar, a fim de ingressar no país idéias européias de
progresso. Não sem antes recolher a irmã Sofia aos costumes no Convento
das Carmelitas. Empreendeu um périplo de 18 meses pela Europa, em que se
fez passar por marinheiro e trabalhar como carpinteiro num estaleiro da
Holanda, aprendeu a retalhar a gordura da baleia, estudou anatomia e
cirurgia observando dissecação de cadáveres, visitou museus e galerias
de arte. Ao assistir a sessões do Parlamento das galerias dos
visitantes, o governo inglês lhe ofertou a morada de um aristocrata, no
que retribuiu com móveis quebrados e retratos utilizados como alvos de
tiro. Pedro indenizou o proprietário com um enorme diamante bruto
envolto num papel sujo.
Ao surgirem notícias de que inimigos das
novas idéias queriam depô-lo, retornou com a revolta já subjugada, o que
não foi suficiente para conter sua fúria. Fez queimar no espeto todos os
prisioneiros, um por um, e, na aproximação da morte, cortava-lhes a
cabeça para expô-las em praça pública e dar exemplo. O que não impediu
de começar simbolicamente o processo de modernização do país ao ordenar
a todos os homens que desbastassem o comprido da barba, com suas
próprias mãos cortava a barba dos nobres da corte. Os longos hábitos dos
homens deveriam dar lugar aos sobretudos e as damas abandonar seus véus
para comparecer nas recepções com vestidos justos e bem decotados, como
se usava na França. Os filhos da aristocracia seriam confiados a
governantas que os familiarizariam com o francês e o alemão.
Impedido pelos turcos de se estabelecer no
Mar Negro, Pedro se convenceu da urgência de se abrir à cultura e
técnica ocidentais. Procurou um outro porto ao norte, à margem do
Báltico, e começou a sonhar com a nova capital, ao tomar emprestado a
baioneta de um dos soldados e marcar com uma cruz no terreno da futura
fortaleza de São Pedro e São Paulo.
Buscou nos Urais, na riqueza de seus
recursos naturais, o tesouro de pedras preciosas que ergueria seu
império à altura de um reino burguês distanciado do rústico que imperava
na corte, do ortodoxamente rudimentar. Às novas terras conquistadas,
crescia o interesse na demanda por jóias e na acumulação que reluzia o
esplendor das monarquias absolutistas dos anos 1500 a 1700, quando a
exploração atingiu seu ápice.
Facilitou a construção de fábricas e
escolas para ensinar matemática, navegação, astronomia, medicina,
geografia, filosofia e política. Lançou o primeiro jornal russo.
Imprimiu 600 obras e construiu um teatro em Moscou, ainda de pé na Praça
Vermelha. A convicção dele era a de que o mal resultava da ignorância, o
conhecimento possuía um efeito libertador ao forjar uma nova alma, sem
desconfiar que contribuía decisivamente para o início de formação de
consciências críticas que marcaram a Rússia na revolta contra a
injustiça e a opressão.
A armada foi reformada depois de os russos
perderem 10 mil homens e a maior parte da artilharia contra os suecos,
bem menos numerosos. Imediatamente, mandou preparar soldados para
batalhas e não para desfiles, e providenciou a troca de lanças, espadas
e alabardas por fuzis com pedras. Desceu sinos e fez subir canhões.
Em 1709, os suecos, que vinham de invadir
a Polônia e a Saxônia, voltaram à carga visando a Ucrânia, quando, em
Poltava, se desenrolou uma das batalhas mais decisivas da história da
Rússia. Aliada aos saxões, poloneses e dinamarqueses, afastou o perigo
de uma dominação sueca sobre a Europa do Norte e territórios bálticos
para sempre. A vitória permitiu a conquista da janela sobre o Ocidente,
o Báltico assegurava uma via de comunicação utilizável durante todo o
ano com o resto da Europa. Pedro já havia começado a construir um porto
ao qual se devia dar o nome de seu santo padroeiro, portanto, o seu. Foi
chamado de São Petersburgo.
São Petersburgo nasceu de um sonho
extravagante de Pedro, o Grande, fazendo-a cultivar um ar de
superioridade sobre sua grande irmã, Moscou, ao dar as costas para a
Ásia, de caso pensado com a Europa. O lugar escolhido parecia ser pior
do que se podia imaginar, um pântano na desembocadura do Neva, lá onde o
rio alcança o golfo da Finlândia. Pedro mandou vir da França e da Itália
inúmeros arquitetos e artistas para construir uma cidade. Com a maior
urgência, ela cresceu sobre as ossadas de milhares de servos, de
prisioneiros de guerra, recrutas requisitados do exército, tantas foram
as mortes por causa do árduo trabalho em cavar canais e secar pântanos
para fixar as fundações.
Ao fim de 9 anos, ergueram-se 25 mil
casas, Pedro, o Grande, a tornou capital da Rússia. Com uma rede de
canais como os de Amsterdã e grandes avenidas arborizadas, a altura das
casas variava segundo a classe social de seus ocupantes. Um andar com
quatro janelas e uma clarabóia, para os comuns, e dois níveis com
sacada, para os ricos comerciantes.
Com o intuito de se vingar das ameaças
sofridas na puberdade em Moscou, e tomado por um maligno prazer, removeu
a corte real em 1712 para os pântanos ainda fétidos de São Petersburgo.
Deveriam abandonar os castelos moscovitas medievais para construir novas
mansões, segundo as estritas diretivas arquitetônicas do czar, que
redesenhava projetos, revisava material de construção e adequação de
estátuas e plantas. A ordem era de povoar a cidade com milhares de
servos de seus domínios.
Considerando que Moscou era o centro
nervoso da Igreja Ortodoxa, Pedro aproveita o ensejo para desvincular a
Igreja do Estado. Constrói a catedral de São Pedro e São Paulo, ao
melhor estilo católico, projetado por arquitetos italianos, e dá largos
passos na aproximação com as idéias do Ocidente.
Tão simples em seus gostos pessoais,
comandava o ritmo das construções de uma modesta casa em madeira onde se
alimentava de rações de carne defumada regadas a cerveja, quanto era
ambicioso em suas pretensões. O Imperador de todas as Rússias, seu novo
cognome em 1721, procurou rivalizar com Versalhes ao erigir o palácio de
verão Peterhof - denominação alemã alterada em 1944 para Petrodvorets -,
com magníficos jardins e chafarizes que permitiam satisfazer sua atração
por brincadeiras: os esguichos jorravam repentinamente e molhavam os
distraídos enredados em filosofia ou intrigas. Recepções e bailes de
máscaras prenunciavam o ingresso da licenciosidade e costumes
escandalosos para padrões ortodoxos, já que Moscou apenas celebrava um
número restrito de austeras festas religiosas.
Foi em Peterhof que o czar teve uma
desavença tempestuosa com seu único filho, nascido de seu primeiro
casamento com uma mulher que nunca amou e que ele encerrou, por fim, num
convento. Sua segunda mulher, com a qual viveu 23 anos, era uma
camponesa analfabeta, amante de um oficial, que lhe deu 12 filhos, dos
quais somente 2 filhas sobreviveram. Alexis, o herdeiro do trono, se
converteu num instrumento nas mãos de conservadores que urdiam a
deposição de Pedro e da capital.
Ao responder de forma evasiva a questões
que envolviam o poder, o czar acusou seu filho de conspiração e o fez
prisioneiro para obrigá-lo a entregar sua alma. Pedro morreu sem
designar seu sucessor em 1725, em conseqüência de doença contraída no
mergulho nas águas geladas do golfo da Finlândia para socorrer
pescadores abalroados por geleiras.
Pedro se preparou para ser não um czar, e sim um
soberano à altura da nação ao elevar os seus horizontes, progredindo
para explorar intensivamente seus recursos naturais e desenvolver a
economia, utilizando-se do engenho da melhor das técnicas e alavancando
a cultura da Rússia, de modo a alcançar um patamar de olho na proposta
expansionista da Inglaterra. Na certeza de que os benefícios iriam
avançar o nível de vida da população, sacá-la do estágio de ignorância
que a atrelava a valores ultrapassados inspirados na crueza do estilo
tártaro - espontâneo, mas rude. Na certeza de aportar uma nova
identidade para o povo russo, em pé de igualdade com outras monarquias
européias, onde todos, nobreza e servos, se envolveriam nesse arremedo
de europeização.
Pedro faria com que a Rússia deixasse de olhar
para o seu umbigo e se permitisse tirar proveito de novas influências
que arejassem a essência de sua alma. Foi o czar que mais chegou perto
do âmago do povo, anacronismo paradoxal em se tratando de servos - tanto
que o imperador Pedro II do Brasil o idolatrava procurando seguir seus
passos na bucólica Petrópolis. Simplificou o alfabeto russo, atrelado
ainda ao grunhir de fonemas e ditongos, e aumentou a possibilidade de
aprender, facilitada pela leitura mais fácil, e de escrever tudo que já
vinha à cabeça, ao imprimir livros e jornais, retirando a Rússia do
atraso medido em termos de alfabetização. Mal sabia que iria
transformá-la numa nação altamente intelectualizada que iria virar a
página da História quanto à exploração do homem pelo homem.
Fecundo o fruto de seus esforços de modernização em inúmeros
campos, contudo, também causaram uma ruptura social. A uma nobreza
europeizada se opunham camponeses e o clero que resistiam de todas as
maneiras a mudanças. O fosso iria aumentar meio século mais tarde sob o
reino de uma czarina saliente, Catarina, a Grande
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