Coleção "Rússia de todos os Czares" - Fascículo 05
FIM DO CZARISMO
Em junho de 1812, a Rússia sofreu o
primeiro de uma longa série de desastres que viria a conhecer durante
todo o século XIX e começo do século XX com o fim do czarismo. Napoleão,
representante desta cultura da qual Catarina fazia outrora apologia,
invadiu o país e ocupou Moscou, que ardia em chamas. Os russos não
titubearam na aplicação da tática da terra arrasada, consumindo no fogo
sua própria cidade e os víveres necessários à alimentação de 500 mil
soldados franceses, dizimados em solo russo pelo General Inverno.
Napoleão bateu em retirada e tornou a Rússia uma grande potência aos
olhos do mundo. Um fracasso sem termos de comparação com Waterloo,
eleito injustamente como paradigma de derrotas grandiosas.
Se não fosse Pedro, o Grande, ao provocar
tremenda fermentação intelectual que permitiu a invasão do país por
idéias e livros ocidentais, os artistas do czarismo não gozariam de
relativa liberdade para abordar a realidade da época e a literatura não
teria explodido no século XIX. Se Napoleão foi posto para correr, os
pensamentos de liberdade, igualdade e fraternidade penetraram fundo no
espaço russo que não reconheceu fronteiras ou campos de batalha.
Foi lá que Pushkin, o maior poeta da
Rússia, tomou contato com as idéias "proibidas" da Revolução Francesa e
preparou o cenário para os grandes escritores que viriam a seguir
produzissem romances, poemas e peças teatrais inigualáveis num único
século. O conflito entre o indivíduo e o Estado, bem como as profundezas
irracionais que existem dentro de todas as pessoas, traduzidos em poemas
diáfanos e elegantes, mereceu-lhe exílios, mediante a fama de jogador
inveterado, beberrão, conquistador barato e provocador de duelos. Diante
de seu sucesso, Nicolau I o libertava de seus exílios com que a censura
o alimentava de criatividade, até nomeá-lo como poeta particular e
cativo do czar.
O primeiro movimento francamente
revolucionário contra os czares ocorreu em 1825, na revolta dos
dezembristas. Nobres e jovens oficiais queriam afastar Nicolau I do
trono, introduzindo o regime constitucional e abolindo a servidão,
insatisfeitos com o arbítrio, ignorância e miséria do regime, a barbárie
da vida popular russa, se comparada com o nível de civilização da França
pós-napoleônica, Inglaterra e império austro-húngaro.
Nicolau I preocupou-se em garrotear o país
e acentuou ao máximo o regime despótico, burocrático e policial do
Estado russo, redundando nas feições de sua cultura até os dias de hoje.
As perseguições políticas sempre foram uma verdadeira praga, a
condenação a trabalhos forçados na Sibéria a praxe, servir ao Exército
um alívio. Dostoievski esteve próximo de um pelotão de execução a três
dias do Natal, a Sibéria foi a sua salvação. E a nossa, Recordações
da Casa dos Mortos foi o primeiro relato escrito sobre campos
prisioneiros da Rússia.
Contudo, não passava pela cabeça dos
camponeses buscar o fundo do mal no czar, um ser venerável e superior,
acima dos simples mortais, para conduzir a bom porto os graves destinos
do Estado. Sob a influência do misticismo religioso, o povo considerava
o período de espera e de sofrimento como algo imposto por Deus, sob
forma de castigo e de provação, se resignando com o fatalismo primitivo.
Não compreendiam sequer o gesto daqueles que se sacrificavam em nome de
sua causa, surdo a todas as incitações, exceto as da rua Arbat.
A rua Arbat, a mais famosa de Moscou, por
onde soldados franceses penetraram em meio às labaredas, a porta da rua
não é mais a serventia da casa. Não é mais benquisto o duelo de
espadachins ou com armas de fogo, a honra não levará mais vidas em vão,
a disputa agora é na base dos punhos, o boxe sem fronteiras, até o
adversário cair desfalecido. Arbat era a arena lotada de desocupados,
apostadores e valentões.
Não era ambiente para matrioshkas. Boneca
típica da Rússia de madeira pintada, que representa a cara redonda de
uma mulher camponesa em vestido bordado, com avental e lenço na cabeça,
em meio a flores e cores vivas. De seu interior, saem outras quatro
bonecas que se encaixam ao se miniaturizarem, ou podem sair mais bonecas
até a última caber uma criança de seis anos. As peças subseqüentes podem
ter o mesmo desenho ou apresentar variações em torno do mesmo estilo.
Nos longos dias de um rigoroso inverno,
Maliutin, homem de grande talento e intuição que ilustrava livros para
crianças, começou a esculpir uma boneca que desse vazão ao seu
romantismo de conquistar uma donzela da aldeia de Simeonovka,
reproduzindo a ela, mãe, avó, bisavó e tia que se encaixassem numa só.
Para conseguir a aprovação da família e se casarem. Matrioshka passou a
simbolizar o amor pela família, a fertilidade, a estabilidade do
casamento, a fidelidade e a segurança do lar. Fez tanto sucesso que se
espalhou por todo o território e virou símbolo do folclore e artesanato
russo, precursora dos brinquedos pedagógicos.
“Mais vale outorgar a liberdade de cima
para baixo que esperar que venham a tomá-la de baixo para cima”.
Pensando assim, o czar Alexandre II vende o Alasca aos Estados Unidos e
concede liberdade aos servos, retirando-os da escravidão. O que não o
livrou do sétimo atentado sofrido, duas bombas foram lançadas na sua
carruagem por estudantes niilistas, arrancando as pernas e a vida do
imperador. A ação não foi compreendida pelas massas, afinal, o czar
queria o seu bem, a nobreza é quem quis se vingar da abolição da
servidão - acusam os camponeses com medo de que a restaurassem, eximindo
os niilistas.
O niilismo foi introduzido na língua russa
pelo novelista Ivan Turgueniev como uma corrente de idéias de caráter
filosófico e moral - não uma doutrina -, abrindo caminho a uma evolução
intelectual que conduziu a juventude a concepções gerais muito avançadas
graças à sua tendência emancipadora. O germe de um verdadeiro despertar
revolucionário, político e social, que repercutiu na libertação da
mulher da tutela do homem no final do século XIX.
Baseava-se no materialismo e no
individualismo, face a tudo que atentasse contra a liberdade de
pensamento. Era contra todas as tradições impostas ao homem pela
sociedade, família, costumes e convenções. Não admitiam nada que fosse
natural e respeitado como sagrado pelos demais.
Ao aceitar o materialismo como uma verdade
indiscutível, absoluta, os niilistas combateram a religião e tudo o que
está além da razão pura ou da prova positiva, contra tudo que pertence
ao domínio sentimental e idealizado. Desprezaram a estética, a beleza, o
conforto, os prazeres refinados, o amor sentimentalóide, a arte de
vestir-se e o desejo de agradar. Comparavam operário ao artista, o
primeiro produz objetos de utilidade para a sociedade, enquanto o
segundo, de nada serviam suas obras. As mulheres usavam óculos e cabelo
curto para aparentar feiúra e desdém pelo exibicionismo, vestiam roupas
ordinárias que desafiavam a elegância, andavam com um jeito viril e
fumavam em desprezo à etiqueta.
Apesar de seu caráter essencialmente
individualista, o niilismo preparou a luta em favor de uma emancipação
concreta: política, econômica e social. Através da geração dos anos 1870
e 80, formaram-se os primeiros grupos revolucionários e socialistas na
Rússia, que nada tinham em comum com o niilismo de antes, sequer foi
base do bolchevismo. A Europa Ocidental se encontrava em meio a grandes
lutas sociais, o socialismo começava sua intensa propaganda e o marxismo
discutia a tarefa de organizar a classe trabalhadora em um poderoso
partido político.
Nessa época, a Rússia não era
mais um país inculto, de reputação associada à barbárie, apenas a
população camponesa permanecia ignorante devido às conseqüências da
servidão. O menor contato entre os grupos formadores de opinião e o povo
era suspeito, passível de repressão, ambiente propício para fomentar
revolução. Os atentados terroristas prosseguiam a uma cadência
assustadora e oficiais eram assassinados, às centenas.
A formação de um partido político operário
chamado de Partido Social-Democrático, que trazia no bojo o marxismo,
vicejava na Europa uma nova concepção de luta de classes integrada a um
programa concreto de ação revolucionária. O que implicou na divisão, em
1903, em mencheviques (minoritários) e bolcheviques (majoritários). Os
mencheviques pretendiam a modernização do capitalismo russo e a
transformação da Duma (Parlamento) na principal fonte de poder político
da nação. Os bolcheviques, liderados por Vladimir Ilitch Ulianov, dito
Lenin, defendiam uma revolução socialista com base nos ideais de Karl
Marx, pregavam a união de operários, soldados e camponeses contra o
czarismo.
O regime czarista levava bordoadas de todos os lados. Em 1904,
a Rússia ocupou a Manchúria e procurou penetrar na China e Coréia,
sofrendo uma derrota humilhante na guerra declarada pelo Japão em que
perdeu a maior parte da vetusta frota. Greves e manifestações
espoucavam. Assembléias populares formadas por operários, camponeses,
soldados, os trabalhadores, em geral, começaram a se organizar em
sovietes.
Em janeiro de 1905, milhares de esfaimados e desempregados
marcharam com suas famílias em direção ao Palácio de Inverno. Na
proverbial ausência do czar Nicolau II, a guarda do palácio atirou sobre
a multidão, matando mil homens, mulheres e crianças, aproximadamente. Os
soldados haviam sido embriagados para perder o escrúpulo. O Domingo
Sangrento, como ficou conhecido, indignou o povo cuja cólera se virou
contra o czar em pessoa, desencadeando uma gigantesca onda de greves e
ocupação pelos marinheiros do encouraçado Potemkin.
É consenso generalizado que a Rússia foi um caldeirão de idéias
e de movimentos anarquistas, visto que Bakunin (1814-1876) e Kropotkin
(1842-1921), os pais do anarquismo, eram russos. Embora com obras
publicadas no estrangeiro, nem um nem outro jamais militou como
anarquista na Rússia, toda doutrinação social, socialista e
revolucionária dos russos não tinha absolutamente nada de anarquista,
não houve um maior interesse, esclarece o anarquista Volin.
A eclosão da guerra mundial foi o derradeiro fracasso que
engoliu a monarquia. O regime czarista, completamente anacrônico na sua
vontade de governar um Estado do século XX como uma sociedade agrária do
século XVIII, não estava preparado para enfrentar esta prova. Depois de
mobilizar 6 milhões de soldados, os generais se aperceberam que não
dispunham de 5 milhões de fuzis. As perdas de vidas humanas se
acumulavam, inevitável o recuo em todas as frentes, obrigando a Nicolau
II a assumir pessoalmente o comando das forças armadas.
Largando nas mãos de Alexandra Feodorovna o descontentamento
reinante e sua repressão, assistida espiritualmente pelo monge Rasputin,
que se tornou mito no folclore da corte com a fama de devasso, beberrão,
analfabeto e grosseiro, além de ter conseguido estancar a hemofilia do
filho da czarina. “Meu mestre bem amado”, lhe escrevia ela, “minha alma
não encontra paz senão quando vós estais perto de mim”.
Em dezembro de 1916, uma malta de nobres decidiu dar um fim
nele, aproveitando-se que o monge era glutão. Um bolo encharcado de
creme misturado com cianureto. Nada aconteceu. Um tiro resolve. Rasputin
cai, se levanta e se precipita sobre a garganta do agressor. Uma chuva
de balas o derrubou definitivamente, o rio foi a sepultura à altura
dessa farsa trágica, um dos numerosos acontecimentos prenunciadores do
desabamento do império.
A origem alemã da dinastia concorreu também para alimentar
sentimentos de alta traição. Mas a gota d’água foi a completa
desorganização da vida econômica no interior do país. Se não fosse pelos
sovietes assegurando a produção e controlando os estoques na
distribuição de víveres. O que comprovou o elevado moral do povo para a
queda do czarismo, encerrando o processo pré-revolucionário de décadas e
dando a última mão à obra preparatória.
Em 26 de fevereiro de 1917, com o anúncio da dissolução da
Duma, regimentos, tropas e soldados se misturaram ao povo que,
encorajado, levantou barricadas, queimou prédios públicos e enfrentou a
Okrana, a implacável e violenta polícia política instalada em pontos
estratégicos. Reduziram as metralhadoras ao silêncio e o czar foi
informado por telégrafo. A ação das massas foi uma ação espontânea, não
preparada nem guiada por nenhum partido político, mesmo porque, em
virtude da repressão, os principais líderes e organismos centrais dos
partidos políticos de esquerda se encontravam fora da Rússia no momento
da insurreição. Com a revolução vitoriosa, eles voltaram.
Enquanto a Duma reunida no Palácio Tauride formava um governo
provisório, as massas invadiam em desabalada correria os salões dos
palácios e ocupavam gabinetes para criarem comitês de ação política.
Intelectuais, pequenos proprietários, a classe operária, sargentos e
tenentes, mujiques (camponeses), sociais-revolucionários,
sociais-democratas, mencheviques, bolcheviques, anarquistas e
extremistas de todas as tendências, agrupados no seio do Soviete de
Petrogrado, discutiam que rumo tomar diante do caos e da fome, da ruína
que assolou mil anos de monarquia.
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