Coleção "Rússia de todos os Czares" - Fascículo 11
O DESMONTE DO COMUNISMO
Depois de completar uma verdadeira
maratona de 60 anos para ver reconhecidos, na olimpíada da política, méritos no
sistema comunista, é natural esmorecer, relaxar a posição de sentido, abrir a
guarda e deixar furos na cortina de ferro, por onde se exibem máculas na
reputação e defeitos de fabricação que ocultaram com tanto apuro.
O gigantesco esforço voltado para a Guerra
Fria acabou por afetar consideravelmente a tecnologia dos produtos
não-militares, ao subdividir as fábricas em 3 seções: militar, de
exportação e doméstica. Às primeiras, tudo, bons salários, maquinaria
moderna e controle de qualidade rigoroso. Quanto à última seção, ficava
com o que sobrava. O que explicava a má qualidade e insuficiência dos
bens de consumo. Com uma economia rigidamente entrelaçada e uma
estrutura de comando altamente centralizada, o funcionamento se revelou
pouco ágil e ineficiente, aflorando a escassez, pois não havia como
procurar outro fornecedor.
Em conseqüência, o indefectível mercado
negro reassume seu posto, gera uma economia paralela e restabelece
informalmente a iniciativa privada. Artigos clandestinos eram
contrabandeados do Ocidente ou comprados de estrangeiros que os
adquiriam nas beriozki
- free shop -, quando não se utilizavam da máquina do Estado para
aproveitar o segundo expediente na fábrica-dentro-da-fábrica e produzir
jeans, bolsas e jaquetas de couro sintético, óculos escuros, perucas e
bijuterias. Pagando operários, contratando gerentes, subornando
burocratas para superestimar matéria-prima e desviá-la para a confecção
de produtos clandestinos, corrompendo outros para fingirem não ver.
Ofereciam participação nas vendas para comercializar os produtos nas
lojas, partiram para organizar pontos de vendas espalhados pelo país,
desafiando o Departamento de Combate à Apropriação Indébita de
Propriedade Socialista.
O uso do cachimbo faz a boca torta, o
marxismo na URSS tornara-se um jargão oficializado que referendava o
stalinismo como método de direção partidária, a imagem verdadeiramente
representativa da ditadura do proletariado. Reproduzindo o mesmo erro
cometido pelo Cristianismo, que cedeu lugar à ortodoxia convencional,
conservadora e intolerante, onde a pureza de princípios dos apóstolos
serviu de tapete para o desfile da hierarquia aristocrática da corte
papal.
A morte de Brejnev em 1982 lega para o
futuro soviético uma gerontocracia, onde uma camarilha senil e
ultrapassada, preocupada em receber homenagens, cravar medalhas no
peito, colecionar automóveis raros, e enaltecer a pátria de Stalin, não
se deu conta da saturação que ditaduras e intervenções estavam
provocando. Tanto que repercutiu mal nos círculos esquerdistas a pressão
sobre os dirigentes da República Popular da Polônia para interditar o
movimento sindical Solidariedade, soou como a morte anunciada do
comunismo.
Forçando Deus a intervir, Ele que se
mantivera neutro ao longo da epopéia comunista. Propiciando à Polônia
devolver a humilhação do Corredor Polonês e da ocupação disfarçada de 50
anos, arvorando-a no papel de verdugo do comunismo. Através de seu
emissário, o papa polonês, João Paulo II, o João de Deus, que cravaria a
cruz bem no coração do monstro que o capitalismo vitaminou e o comunismo
pouco se preocupou em travesti-lo de bom moço. Auto-suficiência essa
baseada no fatalismo da proletarização do planeta e dos ricos não
abrirem mão de sua hegemonia e poder de discriminar.
A evolução dos fatos políticos e
econômicos apontava para a globalização. O país que se excluísse, se
isolaria ao não acompanhar pari passu o avanço da tecnologia, facilmente
um continente poderia se transformar numa ilha. Os círculos concêntricos
que espelhavam a expansão da União Soviética numa bolha começaram a se
desfazer, entrecruzando tendências, idéias e abordagens numa era de
transição que desconstruiria o mito do saber monolítico, do monoteísmo
ideológico e de se arrogar íntimo da Morte para dispor sobre a vida de
concepções e seres inconvenientes ao status quo da ideologia adotada -
qual mesma? Não foi por outra razão que abortou-se na sala de operações
de um moderno hospital, a tentativa surrealista de restabelecer o
stalinismo, ao investir no poder Yuri Andropov, antigo chefe da KGB -
positivamente, o comunismo extrapola crises nervosas e úlceras
incuráveis.
Em abril de 1985, chegava ao poder o
coveiro do stalinismo, com um amplo programa de reformas democráticas
que, em poucos anos, mudaria sensivelmente a disposição geopolítica do
planeta. Mikhail Gorbachev declarou moratória nuclear unilateral,
abrandou a censura à imprensa, libertou os presos políticos e iniciou a
retirada das tropas soviéticas do Afeganistão. Esvaziou as funções do
Pacto de Varsóvia e desmilitarizou o teor das conversações
internacionais sobre assuntos estratégicos.
Normalizou o abastecimento de bens de
consumo e aumentou a liberdade de expressão, ao popularizar a
perestróica (reestruturação do sistema econômico) e a glasnost
(transparência). A Guerra Fria foi pro espaço, mas suicidaram a União
Soviética, cuja transição para a globalização não observou a mesma
cautela e maturidade da China. No arder do confronto denominado Guerra
nas Estrelas, o presidente e ator chinfrim Ronald Reagan levou a melhor
no comando da derrocada do regime comunista. O que lhe custou o mal de
Alzheimer, não se brinca impunemente com maldições na terra das
matrioshkas.
Multiplicaram-se os movimentos
democráticos, milhares de alemães-orientais começaram a deixar o país
aproveitando o clima de abertura. As autoridades evitaram um
enfrentamento para afastar o risco de um banho de sangue como o da Praça
da Paz Celestial, em Pequim. Pagaram caro a tentativa de implantar uma
sociedade inspirada na igualdade social, que revirou o mundo com Marx e
suas teorias a desencadear ódios hidrófobos em interesses atingidos.
Em 1989, o Muro de Berlim é destruído a
golpes de picaretas.
O fim do comunismo, desmonta-se a União
Soviética, as repúblicas ganham independência, torna-se à Rússia branca
eslava, impregnada de báltico, turcomano, tártaro, turquestano e
siberiano. Ao examinar detidamente, por uma semana a fio, a fisionomia
de Ivan, o Terrível, na galeria Tretyakov, um estudante retalha sua cara
estampada num quadro, sob o pretexto de desmontar seu espírito.
Removeram o corpo de Stalin do mausoléu de
Lenin e o enterraram nas muralhas do Kremlin numa discreta sepultura, se
valendo do mesmo processo que usou contra os seus adversários políticos,
ao rebatizarem cidades, praças e ruas - só não retocaram fotos oficiais.
Limparam as prateleiras de bibliotecas e jornais de suas diretrizes e
orientações, para arquivar morto nos porões a coerção que castrou a
audácia intelectual e a conotação crítica que caracterizavam o marxismo.
O bom filho retorna à casa. Escaldada pela
rigidez comunista que a obrigou despir-se do manto imperial, símbolo de
um poder aristocrático e paralelo, a Igreja Ortodoxa volta ao convívio
estreito com seu rebanho, inserida em uma realidade que pede cautela e
humildade. Pois que a KGB também despiu-se da farda para disfarçar-se de
civil, entranhada na burocracia que resultou do desmonte. Da qual não se
exclui a Igreja, que permaneceu ortodoxa na tradição em manter os fiéis
de pé na missa e na devoção aos santos. Sentar desconcentra a fé.
Incursos estamos sempre no pecado, natural a penitência.
Lenin não chegou a meter a mão
na massa, os tiros de Fania Kaplan mudaram a história do comunismo, que
seria outra nas suas mãos. Foi embalsamado para se transformar num mito,
um ícone a exemplo da foice e martelo. Matando Cazuza 70 anos depois e
sua ideologia na poesia “eu quero uma pra viver”, deixando a esquerda
órfã e o mundo à mercê do império que sobrou, os Estados Unidos. À
procura de outro Império do Mal e de uma defrontação sem fim, seja
econômica, ambiental, tecnológica, bacteriológica e explosiva, a fim de
preservar um poder sem fim.
A população russa diminuiu de 170 para 140
milhões, resultantes do desaparecimento maciço de velhos comunistas com
a nova envergadura do capitalismo, que os deixou descontentes, amargos,
doentes, morrendo à mingua com um salário-mínimo de 15 dólares. Face a
face com a avaliação do FMI, quanto aos tesouros herdados do czarismo,
em função de empréstimos solicitados por Yeltsin: 5 trilhões de dólares.
Assim, os sonhos de Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, e Lenin
foram realizados, mas a força bruta e o totalitarismo personificados na
alma de Stalin descrevem com rigor a história da Rússia, a Rússia de
todos os czares, que abortou sua história em meio a tantos mistérios.
Por mais repressivo que tenha sido, o povo russo ama o seu
país. Juntos passaram pela revolução comunista, por guerras e expurgos,
não perderam a consciência de que são especiais. O sofrimento revela a
face da tragédia que mapeia a sua história e a sua alma, venceram 500
anos de atraso e graças ao seu trabalho se tornaram uma potência de
cultura inquestionável.
Tolstoi, no romance Ana Karenina, afirmou que toda
felicidade se assemelha e todo infortúnio tem seu caráter particular. Na
sua vida plena de adversidades, atormentado por crises existencialistas
que o transformaram num crítico encarniçado dos poderes estabelecidos e
da Igreja Ortodoxa, que o excomungaria, era a felicidade, ao contrário,
que assumiria uma singularidade especial. De nome Iasnaia Poliana (campo
claro, em russo), a propriedade rural onde nasceu em 1828 e que
freqüentou até morrer, em 1910.
Por onde andou, Moscou, Cáucaso ou nas altas esferas da Europa,
se cansou dos círculos aristocráticos e intelectuais, dessa horrível
classe literária, reclamava. Era para Iasnaia Poliana que o conde
Tolstoi se dirigia. Em busca de paz. Cercada de bosques e pequenos
lagos, com uma bucólica casa no topo de uma pequena colina, Iasnaia
Poliana é um lugar onde a felicidade parece muito próxima. Foi lá que
escreveu seus romances mais famosos e consultou mapas para reconstituir
as manobras militares dos exércitos francês e russo, descritas em
Guerra e Paz.
Em busca de uma verdade íntima de caráter místico, acabou por
dedicar-se a uma vida de comunhão com a natureza e tornou-se um
pacifista vegetariano, trajado como um mujique. Absteve-se de sexo e
engajou-se em atividades filantrópicas. Convencido de que ninguém deve
depender do trabalho alheio, buscou a auto-suficiência e passou a limpar
seus aposentos, cortar lenha, lavrar o campo e produzir as próprias
roupas e botas. A contragosto viu sua casa atrair discípulos que
pretendiam viver segundo seus ensinamentos.
Ivan, Pedro e Lenin, todos mortos aos 53 anos, uma cabala
reveladora de que o urso gigante da Rússia agora se acalma, com laivos
de hibernar-se, para ceder seu papel histórico e epopéico a outra nação.
O comunismo afundou como o continente perdido da Atlântida, para
reaparecer um dia, livre dos rigores do General Inverno que o submergiu.
O planeta ainda não estava preparado para conquistar uma unidade que
solucionasse a injustiça na distribuição de ganhos e a falta de
solidariedade que nos mantém no estado de ignorância.
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